O MAL-ESTAR, HOJE[1]
Ricardo Estacolchic
Li, há alguns anos, um interessante comentário acerca de
uma partida de xadrez. A particularidade residia em que a crônica
estava assinada por um dos jogadores, o qual nos comunicava não
tanto os motivos estratégicos ou táticos das jogadas, senão
que preferia atender particularmente às suas reflexões a
respeito do público.
Acontecia que, como às vezes ocorre nos torneios, as preferências
e os murmúrios dos aficionados eram perfeitamente audíveis
pelos mestres que participavam da competição; estes, em geral,
preferem não se distrair com as sugestões ou observações
do público, uma vez que costumam haver enormes diferenças
em matéria de conhecimentos e profundidade de cálculo.
Mas eis aqui que nosso jogador nos brinda a crônica do efeito que
tais comentários lhe inspiram.
Pois bem, ele, de estilo naturalmente agressivo, começa a partida
com o sacrifício de dois peões. É uma forma bastante
freqüente de começar: o jogador que sacrifica material na abertura,
aposta que obterá vantagens de tempo no desenvolvimento das peças
maiores.
O segundo jogador, se é que aceita o convite, deverá defender-se
por um tempo variável até que possa fazer valer a superioridade
material.
Agora então os comentários.
“As pessoas estão muito entusiasmadas com meu insípido gambito”,
nos relata o jogador. Com efeito, o público se lambe ante a perspectiva
de uma batalha descomunal, mas à medida que a partida se desenvolve,
nosso jogador compreende que a defesa vai se saindo muito bem e que quando
se dissipe a bruma, o sol sairá a favor do oponente. Este é
um modelo de partida bastante habitual. Quando a defesa foi eficiente,
impõe-se ao primeiro jogador uma tomada de decisão: ou realiza
um novo sacrifício material, a fim de reviver a força do
ataque, ou então busca uma posição de resistência
para tentar um empate. Há outras perspectivas, mas vou economiza-las;
pois ocorre que na sala de jogo se intensifica o murmúrio e agora
chega claramente aos ouvidos de nosso jogador que vários assistentes
viram que sacrificando uma peça maior agora talvez o ataque possa
continuar... outro sacrifício!E o que o jogador responde em voz
baixa, me parece que não está mal: “com as peças
alheias, todo mundo é generoso”.
Temo, porém, que a aparente simplicidade da cena nos faça
perder algo saboroso. Voltemos ao momento em que os aficionados “cantam”
o sacrifício da peça.
O jogador (se nos permitirá chamá-lo o sujeito, entre outras
coisas porque o comum em um momento assim é que se encontre angustiado)
está obrigado a decidir entre o que ele quer e o que demanda o público
(a quem chamarei o Outro, ou melhor, a conivência Outrificada) o
qual pede por mais espetáculo, mais emoção, isto é:
mais gozo.
De modo que nosso sujeito no caso de escolher um movimento
que não corresponda à expectativa de gozo da conivência
Outrificada arriscará enfrentar as mais diversas invectivas, como
ser chato, covarde, etc., etc.
Como se vê, estamos em plena vida cotidiana.
Com as peças alheias, com o capital libidinal ou ideativo dos demais,
somos todos extraordinariamente dispendiosos, apoiados, por suposto, nas
melhores intenções.
Um paciente também me relatou certa cena enxadrística, vivida
por ele quando criança, muito divertida e instrutiva. Haviam indicado
a ele a importância de anotar de modo prolixo todas suas partidas
com a finalidade de poder reconstruí-las mais tarde e, advertindo
os erros cometidos, melhorar no futuro. O futuro, isso sim, o futuro!
Mas eis que o menino tinha apenas os rudimentos do jogo
e anotar corretamente lhe exigia muita atenção e tomava muito
tempo dedicando-se, assim, a pensar mais na folha de papel que tinha em
sua mão direita do que a olhar para o tabuleiro. E assim, perdia
sempre. Mas anotava cada uma de suas derrotas com toda a objetividade.
De novo temos ao sujeito entre sua jogada e a demanda social.
* * *
Como sabem, não é raro que uma pessoa nos consulte angustiada
porque deve tomar uma decisão que pode ser significativa para seu
destino ulterior. Tampouco é raro que tenha consultado antes a uma
grande quantidade de profissionais e a todos os seus amigos. Cada um dele
indicou-lhe generosamente o que fazer, com esta mistura de temores próprios,
anseios inconfessáveis conhecidos e desconhecidos, bobagens pré-digeridas,
leituras feitas às pressas e coisas variadas emitidas pelos sábios
da televisão, de que se nutrem sempre os conselhos.
O consulente, o consulente crônico, me ocorre dizer, de modo a definir
certo estereotipo de subjetividade moderna, se encontra frente a esta multidão
de conselheiros crônicos, como que rebatendo sem tom nem som e, por
suposto, cada vez mais angustiado, girando em falso e em aceleração
contínua; nos damos conta porque fala cada vez com maior velocidade
e parece que não há modo de conter essa aluvião de
bobagens.
Não é tão comum, mas já os vi numa ou noutra
ocasião e, na verdade, resulta totalmente verossímil que,
na entrevista seguinte, venha com um destes aparelhos modernos que se usam
um ou vários dias a fim de monitorar o ritmo cardíaco, tendo
ingerido uma pastilha receitada por um médico e outra pastilha receitada
por uma amiga, começando uma terapia floral e outra homeopática.
Entrementes já se entrevistou com dois ou três psicanalistas
mais e também com outros terapeutas de idéias mais modernas;
falou pela centésima vez com os pais e os irmãos que somaram
conselhos com o arrojo que os caracteriza.
Espero que o que digo evoque a experiência da cada um.
* * *
Quando se liga o rádio, não há programa que careça
de “especialistas” que nos digam tudo acerca de tudo, eles nos mantém
a par dos enormes conhecimentos que existem agora, graças a Deus,
de modo que muito cedo nenhum de nós se atreverá a fazer
nada, mas absolutamente nada, sem ser previamente assessorado por um ou
vários especialistas. E assim andamos. A cabeça em outra
cruz[2].
O livro “Desde o jardim” mostrou brilhantemente como, provendo-se de quatro
ou cinco slogans polissêmicos, e manejando-os com um mínimo
de habilidade, é suficiente para triunfar na pantomima atual de
palavras vazias.
* * *
Vejamos agora um outro lado.
A cada tanto eu me pergunto por estes psicóticos estabilizados que
vemos nas cidades pequenas. Eles se vestem de modo bizarro, certamente;
costumam carregar um instrumento musical ou outro artefato qualquer e por
vezes se nota rapidamente que gostam de representar algum pai histórico,
como por exemplo, Napoleão ou Julio Cezar, com um humor admirável
e pouco comum e se pode notar que as grandes medalhas e insígnias
que brilham são tampinhas de Coca-Diet.
Acredito entender que não devemos exagerar a significação
de tais casos isolados, mas não me privarei de dizer que sempre
me chamou a atenção sua espontânea estabilização
que, até onde averigüei, parecia duradoura.
Vale a pena interrogar-se um pouco, porque tal estabilização
duradoura e espontânea, com um laço social compatível
com não estar encerrado, não tomar medicação
alguma nem estar vigiado permanentemente por especialistas, é algo
muito melhor que a enorme maioria dos resultados que se obtém nas
grandes cidades que contam com o auxílio de toda classe de especialistas
e eruditos.
Então, o quê? Não será que aí simplesmente
se os aceita como Outros?
De quando em quando alguém lhes oferece uma tarefa, ou comida, ou
algum dinheiro, mas não parece que ninguém deseje “curá-los”.
Quer dizer, ninguém os torna objeto da imposição fálica
habitual. Por tanto, o impulso depredatório sobre sua alteridade
não vai longe, ninguém é demasiadamente generoso com
ele.
E o quê é aceitar um sujeito como “Outro”?
Diria que é entender que esse sujeito se enfrenta a um Real que
não é o nosso. É um modo de dizer que ele vive em
seu próprio mundo. Mas se cada um de nós vive em seu próprio
mundo (Freud chamava a isso “realidade psíquica”)! Assim podemos
dizer, com Safouan, que o que a sociedade reprime não é a
sexualidade, senão a verdade. Qual verdade? A de que cada um tem
seu próprio Real e a neurose supõe um voto de repúdio
sobre este Real não compartilhado. Ainda que certamente se compartilhe
a neurose.
Explico-me: podemos chamar a esse Real, como se faz hoje em dia em meios
lacanianos, “não há relação sexual”, ou mesmo
“radicalismo da falta”, etc.
O fato é que cada sujeito deve elaborar artesanalmente, artificialmente,
o modo de embarcar nele, nesse Real, e esse modo vale exatamente para ele
e só para ele.
A entrada na fase final da transferência costuma coincidir com o
momento em que o sujeito deixa de demandar parecer-se aos demais, deixa
de estar desesperado por formar parte do rebanho.
Porque é certo que ao movimento depredatório da alteridade
que vem da chamada “cultura”, o sujeito contesta usualmente com uma demanda
de ser instrumentalizado, objetalizado, enfim, liberado de si mesmo, o
que tem levado muitas vezes a exclamar, com razão, que provavelmente
não haja ninguém que se alegre de respirar livremente[3].
Como entender isto?
* * *
Recorrerei uma vez mais a exemplos concretos e freqüentes.
Sabemos que não é nada raro que nossos analisantes consultem
de vez em quando a um futurólogo, a um sujeito suposto saber o que
virá.
Trata-se de uma analisante que recorria a eles em momentos de catástrofes
matrimoniais, isto é, nestes momentos em que, por assim dizer, não
se pode desconhecer de todo a inadequação dos gozos respectivos,
ou seja, o Real de cada um. Temos por assentado que um futurólogo
não é bobo, de modo que, palavras mais, palavras menos, responde
que se bem hoje não há relação sexual, amanhã
haverá. É esta a resposta habitual.
Neste contexto, ela traz um sonho: viaja de trem e quando o inspetor lhe
solicita seu tíquete, ela responde: “meu bilhete está com
outro”.
Creio que isto nos esclarece um pouco as coisas. No lugar mesmo do Real,
cada um demanda um Outro que tenha seu bilhete, e este bilhete funciona
como um véu sobre aquilo que vale como Real para o sujeito. Nesse
momento o sujeito pede a gritos um Amo do mal-estar que o narcotize pelo
menos um pouco, que o libere do peso da falta.
A prática analítica se orienta para o coração
do Real.
* * *
Parece que os gregos consultavam oráculos de vez em quando. Já
vimos que o estado atual é de consulta permanente de todos a todos
sobre todas as questões.
Contudo, creio que a própria proliferação de “especialistas”
vai nos dando um índice de que essa solução está
começando a mostrar seu inevitável fracasso. Os “livros”
que te dizem os procedimentos para eliminar tuas zonas errôneas já
são milhares e logo será preciso interrogar-se sobre o quê
fazer afim de não morrer aplastado por tanto papel escrito com amor
e conselhos úteis. A situação atual me lembra a exclamação
de um bom jogador de futebol, faz umas três décadas. Era o
momento em que começava o auge dos diretores técnicos, a
mecanização do jogo, os quadros-negros, os espiões
e tudo isso. Então, o jogador comenta para um grupo de amigos: “esta
é a primeira vez em minha vida que tenho a bola nos pés e
não sei o que fazer!”.
A desdita deste homem estava dada por uma certa defasagem temporal. Hoje
em dia há para ele muitos modos de “aumentar sua auto-estima” ou
de “gostar de si tal qual se é”, etc.
A cultura, hoje, propõe mudar o mal-estar, transformá-lo
em debilidade mental.
Outubro de 1994
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