Ricardo Estacolchic
“Você foi eleito. Participará de um fantástico sorteio
no qual ganhará fabulosos prêmios. De fato, já ganhou
porque nós já realizamos uma rigorosa seleção
prévia”.
Conforme ao exposto, é sensível advertir que se trata de um desejo que não coincide com os discos correntes, esses que abonam a paixão do ser e que ao mesmo tempo abonam o que Freud chamava “Miséria neurótica”. A miséria neurótica se abona, exatamente com o mesmo fertilizante que a paixão do “ser”. Coincidirá então (o desejo do analista) com o pequeno desvio por onde a paixão de ser faz amizade com o desejo de ter ou, melhor dito, com a frenética reclamação habitual de ter e ter para poder acalmar-se por alguns minutos? Salvo por ocasionais motivos táticos ou vacilações calculadas, não creio! Se o núcleo do desejo do analista não fosse muito circunspecto, reticente eu diria, com respeito à amplíssima gama de propostas onde o ser golpeia a cabeça contra a parede do ter, que aconteceria? Estaria favorecendo a assimilação do objeto “a” a um objeto empírico, e se tivéssemos que dizer algo do objeto “a”, seria que não se trata de um objeto comum, não se trata de um objeto que se possa demandar. Dita assimilação devolve ao sujeito o amparo do Outro, sobretudo sua servidão. Servidão reforçada cada vez que o desejo se assimila à demanda, gera por sua vez sintomas e angústia cada vez piores. As servidões podem mesmo provocar alívios transitórios, compensações, porquê não? Um governo não costuma suportar-se melhor que uma análise; e também é certo que é preciso ter em conta a estrutura de base. Mas hoje nos reúne o final e então, o desejo do analista será um desejo de nada? Não de ‘nada’, dito assim de forma seca, senão de nada que incremente o narcismo do desejo, quer dizer, onde o desejo se desvia em paixão de ser fálico. É por esta razão que se pode afirmar que o desejo do analista é um desejo abstinente. Abstém-se de indicar qual é o objeto bom. Abstém-se de indicá-lo pela razão mais simples do mundo: porque não sabe. Se algo deve ter extraído o analista de sua própria análise é justamente a marca indelével, ativa e irrefutável de que ninguém sabe qual é o bem. Isso o sabem o papai e a mamãe da criança fálica (assim lhes parece), não o psicanalista. Se o analista conhecesse o bem do outro, a psicanálise não seria necessária, nem sequer teria existido; esta é uma verdade primeira que convém ter presente. Quando o analista conhece o bem, todo o processo se reduz a uma posta em ato de sua pulsão de domínio. O desejo do analista é um desejo que se vê livre da pulsão de domínio, justamente porque não conhece o bem, na análise não conhece o bem; a pulsão de domínio pode ser exercida no ginásio, ou com a esposa, o marido, etc. Requer um longo tempo percorrer a história na análise, reescrever alguns capítulos, inclusive retocá-los várias vezes. Não há modo de abreviar isso e pretender encurtá-lo seria, uma vez mais, conhecer o bem. Chegado porém o final, o sujeito já renunciou a várias enfatuações e delírios de presunção. O mais persistente destes delírios de presunção é o que me leva a pensar que eu poderia ter tido pais diferentes dos que tive, e ainda poderia seguir dizendo “eu penso” e esse eu seria o mesmo, mas com diferentes pais. Este delírio informa muito bem acerca do que significa o narcismo, que Freud via com razão como o limite das análises e do que implica reforçá-lo, coisa que infinitiza a análise. Eu poderia ter as mesmas idéias, gosto, reflexões, sensibilidade e tudo isso, mas ter nascido de pais diferentes. É preciso um longo percurso para renunciar a essa enfatuação, para estar advertido de que para eu ser o que fala era absolutamente necessário que todos e cada um dos acontecimentos de minha história tivessem ocorrido tal qual sucederam, nessa ordem e com todas as contrariedades e frustrações; porque se não tivessem acontecido como tal, esse eu que fala não seria o mesmo, ou seja, que é vão interrogar-se acerca de coisas que não importam; Lacan dizia que a análise é tomar em conta as coisas que importam. O difícil, o inaudito do momento final, é, como me disseram certo dia, que agora não há em quem jogar a culpa. Este é um reconhecimento de dívida verdadeiro, genuíno e sem falsa impostura; sem venerações impostas as coisas foram assim e assim deviam ser. Mas não se trata de uma aceitação cega do destino em sua louca autoridade, ao contrário. Para quê então me dei conta de que as cartas que me tocaram são boas se é que as jogo habilmente e dando tempo ao tempo? Seja como for, são essas e não vale a pena pensar que teria sido maravilhoso ter outras. Devo jogar bem porque a partida é hoje. Partida nos dois sentidos. O sujeito do fim de análise não é um descrente, só que não crê nas suficiências. Não há inconveniente algum em pensar que em matéria de desejo o bom Deus preferiu deixar alguma página em branco a fim de preservar em cada qual sua particularidade. O sujeito do fim de análise adequará[5] seu imaginário ao real, ao menos em dois sentidos diferentes: não vale a pena considerar as coisas como deveriam ser senão como realmente são; o bem do outro é impossível de saber. Inclusive acerca do próprio bem adquire um saber que com gosto chamo de socrático. Recordar-se-á que a vantagem de Sócrates a respeito de seus concidadãos consistia apenas em vislumbrar sua própria ignorância. Este é o efeito da castração, não do “complexo de castração” no imaginário. No final de análise o sujeito cruza o rubicão das demandas e estátuas de suficiência. Navega embarcado em sua divisão subjetiva. Sabe que interessa menos a outra margem do que a navegação como tal. |
1. Ao que tudo indica, este texto foi inicialmente apresentado
em uma mesa sobre o final de análise. Tradução de
Luiz-Olyntho Telles da Silva.
2. O autor escreve Buenos Aires.
3. O dicionário Aurélio não registra este
sentido em português (N. do Tradutor).
4. Faz pouco, pretendi mostrar, baseado em uma fantasia de Borges
(Três versões de Judas) como o sujeito, ainda no extremo da
abjeção, pode estar identificado ao Outro como lugar da plenitude.-
R. Estacolchic: O cálculo da neurose, Biblioteca EFBA.
5. O autor utiliza o verbo adequar na terceira pessoa do tempo
presente. Como em português trata-se de um verbo defectivo no qual
não se conjugam as três pessoas do presente singular, optei
por passar o verbo ao futuro (N. do Tradutor).