DOIS INVENTOS PSICANALÍTICOS

DO FINAL DESTE SÉCULO:
A
REUNIÃO LACANOAMERICANA DE PSICANÁLISE
E A
CONVERGÊNCIA,
MOVIMENTO LACANIANO
PARA A PSICANÁLISE FREUDIANA

por
Luiz-Olyntho Telles da Silva

La grande histoire véritable
       est celle des inventions.
       RAYMOND QUENEAU, 
       Traits, chiffres et lettres

       Inventar é queimar naus.
       NELSON GERALD, 
O caminho de Gilgamesh

.
          Caros colegas,

          Estamos aqui para falar de dois inventos do final deste século, inventos psicanalíticos. Como nós os vemos e o que esperamos deles.
          Os termos da convocatória começam por circunscrever um limite temporal: o final do século e os nomes dos inventos não deixam dúvida de que se trata mesmo do final deste século.
          Pois queria contar-lhes que no começo desta semana tive a oportunidade de assistir a uma entrevista de um historiador, o Prof. Voltaire Schiling. Fiquei muito contente de poder ouvir um historiador que, além de ser da minha geração, também foi meu contemporâneo na Universidade onde muitas vezes cruzamos pelos mesmos corredores. Pois em determinado momento de sua entrevista, na qual foram abordados diversos assuntos, ele dizia que era um engano pensar que a globalização era um fenômeno de agora; na sua leitura, a globalização é um fenômeno que tem pelo menos quinhentos anos, tendo começado na península Ibérica com as grandes navegações de Magalhães, Colombo, Cabral... as quais foram deixando como rastro nomes de sua língua como Açores, Ceilão, Formosa, América, etc. Depois, este movimento passou a ser desenvolvido pela Inglaterra e no momento é encabeçado pelos Estados Unidos. A linguagem de computador é toda ela em inglês. 
          Dos argonautas da Odisséia de Homero aos internautas da Odisséia no Espaço de hoje, parece que navegar é mesmo preciso...
          A Convergência parece ter nascido de uma necessidade de tornar mais estáveis e permanentes as conquistas que a Reunião Lacanoamericana vinha efetuando. E a Lacano, de onde ela nasceu?
          “Ó tempora, ó mores”, reza um antigo ditado latino. Os lacanoamericanos, diria, são também filhos de seu tempo.
          Todos sabemos que a expressão “Lacanoamericana” significa “leitor de Lacan”, talvez também, ainda mais especificamente, “aquele que conheceu Lacan pelas letras”, não pessoalmente. E quem foi que cunhou esta expressão? O próprio Lacan, ou seu genro o qual, segundo se diz, escreveu seus últimos discursos? O que me parece interessante salientar, em todo o caso, é que mesmo tendo a expressão sido criada por este genro o qual, por seus procedimentos éticos, se afastou de nossa simpatia, o termo não foi recusado. E isto é algo do nosso tempo: é um fato que nos põe a pensar na relação entre uma obra e seu autor!
          Se nos identificamos com o termo “lacanoamericano” é por sua conotação de leitor e isto porque estávamos, e continuamos, muito sensibilizados pela leitura que Lacan fazia de Freud. Aprendemos a ler com ele. E o que faz esta leitura? Quando Foucault, em Ditos e Escritos (1969) pergunta “o que é um autor?”, ele propõe que se examine o que significa um “retorno à origem” e compara as conseqüências de um reexame dos textos de Galileu, Freud e Marx, para concluir que isto poderá mudar o conhecimento que nós temos da história da mecânica, mas que isto não poderia mudar, de modo nenhum, a própria mecânica. Já a releitura do texto de Freud modifica a própria Psicanálise, enquanto a de Marx, o marxismo. 
          Isto significa que estamos no campo da interpretação e o movimento de retorno implica que já não é suficiente saber o nome do autor de texto para dizer de seu valor. E é bem provável que isto se deva à noção de escrito que temos hoje onde se nota um profundo esforço em pensar a condição geral do todo o texto, quer dizer, não só as condições do espaço onde ele se dispersa, mas também o tempo em que ele se desloca. Talvez pudéssemos ler, sob esta perspectiva, o escrito da revista Scilicet onde não aparece o nome dos autores. Aliás, antes de Lacan, Freud já havia feito esta distinção entre o autor e sua obra ao colocar em dúvida a autenticidade dos escritos de um de seus mestres, um daqueles a quem ele titulara de “eminente psicanalista”. Refiro-me a William Shakespeare. Quem foi mesmo que escreveu a obra de Shakespeare? A obra prima de Goethe, por sua vez, foi retirada do repertório popular. Não se duvida que ele mesmo a tenha escrito, mas sabe-se também a origem. 
          Na sua entrevista, Voltaire Schiling nos contou um sonho de sua infância: morar em uma biblioteca. É onde ele mora hoje!
          Dar curso aos sonhos, transformando-os em realidade, é a grande ambição. Freud não só deu curso ao grande sonho da humanidade, traduzido por Goethe como o de “ganhar terras ao mar”, como adentrou a este século que agora termina, literalmente, com um livro de sonhos. Terminou o século com um sonho que se fez realidade através do seu Die Traumdeutung. Mas não foi um invento só dele; Artemidoro de Daldis, ou de Éfeso, que viveu no segundo século de nossa era, para não falar de seus amigos e colegas contemporâneos, também participou da idéia. Quer dizer: Freud tinha claro que era preciso preparar-se para enfrentar o amanhã, nome adequado para o desconhecido que nos aguarda depois da escuridão (nem sempre a agenda é um instrumento suficiente para domesticar o amanhã). Freud descobriu que o que movia o sonho era uma categoria chamada desejo e, porque este se mantém inconsciente, as pessoas tendem a acreditar que o que lhes acontece tem uma outra origem, divina ou infernal.
          O que o Prof. Schiling chamou de “sonho de infância” já não pode mais, na verdade, ser chamado de um sonho infantil: é o sonho de quem sabe que há uma inocência a perder e quer perdê-la. O caminho que a cultura tem percorrido é um caminho de não retorno e o homem parece disposto a ir ao encontro de realidades além do alcance da compreensão e do seu - nosso - controle, como diz George Steiner, não sem um certo desconsolo.
          A Psicanálise tem nos ensinado que as aparências enganam e também o valor da denegação para que possamos conhecer nossos desejos; temos aprendido de sua ética que aquilo que fazemos não é sem conseqüências: conseqüentemente não é sem conseqüências para nós mesmos!
          A Reunião Lacanoamericana tem nos mostrado o valor de um texto lido por seu autor e isto, creio, tem nos levado em frente e tem trazido como conseqüência a possibilidade de aproximação entre as instituições, o que antes não era possível.
          Não deve ter sido por acaso que isto começou na América: talvez seja nossa vocação global inadvertidamente instaurada pelos navegadores iberos. 
          E assim nasce Convergência, aproximando mais ainda americanos e europeus. Não que isto seja fácil. Assistimos há pouco a tentativa feita pela ONU, em Seatle, nos Estados Unidos, de reunir os países e vimos o desastroso resultado. E poderia ter sido diferente? Tantas diferenças étnicas, sem a menor experiência de fazer coisas juntas? Mas foi a primeira vez. Na próxima, provavelmente, já será diferente.
          Em 2001 teremos, em Paris, o primeiro encontro de Convergência. Será reconhecido pela UNESCO que cederá suas instalações para sediá-lo. O caminho da globalização que por aí se infiltra?
          Os organizadores do encontro planejaram uma nova estrutura de funcionamento, uma estrutura que busca operacionalizar as leituras dando-lhes uma maior potência e alcance. Esperemos que funcione.
          Em todo o caso, pensei que alguns pontos não deveriam ser desconsiderados, nem pela organização do encontro, nem pelos que lá se apresentarão.
          Os pontos a que me refiro foram sugeridos por Italo Calvino; ele se dispôs a fazer “Seis propostas para o próximo milênio” baseado na leitura de textos clássicos e contemporâneos.
          Eu as tomo em consideração por vários motivos: seja pela minha simpatia com o autor; seja pela pertinência das propostas e minha identificação com as mesmas; seja pela data em que foram escritas, em 1985 para serem apresentadas em 1985-6, e a Lacanoamericana começou justamente nesta data; seja, enfim, porque ele deveria apresentá-las à Cátedra das “Charles Eliot Norton Poetry Lectures”, na Universidade de Harvard e faleceu antes de fazê-lo; seja mesmo porque, noutros tempos, tive uma analisante que se divertia muito chamando-me de Eliot.
          Os pontos que ele enumera são os seguintes: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. Surpreendentemente, como puderam contar, apenas cinco. Vejamos: o herói da leveza, para Calvino, é Perseu que anda pelas nuvens e pelos ventos com as sandálias aladas ganhas das irmãs de Medusa e monta o cavalo alado Pégasso. O símbolo da rapidez é, poderia dizer, o coup de foudre, que domina a paixão, representado pelo anel de Carlos Magno que, quando enviuva, não consegue se afastar do cadáver da esposa a quem manda embalsamar. O Arcebispo, preocupado, descobre um anel sob a língua da defunta e o retira; imediatamente, o Imperador volta seu amor para o Arcebispo que, para escapar desta situação embaraçosa, joga o anel no Lago Constança. Enamorando-se, em seguida, Carlos Magno do lago não mais se afasta.
          A exatidão está representada pela pena de Maat, deusa da balança para os antigos egípcios, e servia de contrapeso no pratinho da balança onde se pesavam as almas.
          Para saber da visibilidade ele recorre às figuras produzidas pela imaginação na fantasia, e toma como exemplo o verso 25, do Canto XVII, do Purgatório de Dante, onde o poeta diz: Poi piovve dentro a l’alta fantasia. Na tradução de Cristiano Martins (Itatiaia, 1989) o verso está transcrito assim: “Em seguida surgiu-me à fantasia” e, na tradução de Xavier Pinheiro (Falco Masucci, 1965) reza “Naquele êxtase logo após eu via”. Se a tradução mais recente recuperou a fantasia perdida na primeira, ambas perderam a idéia de que se trata da “alta fantasia”, de uma fantasia superior, alimentada por uma chuva de imagens ideais emanadas de um manancial celeste. Quer dizer, ainda que de um outro superior e com o preço da renúncia do corpo, Dante reconhecia que a significação vem do Outro.
          E Calvino termina suas propostas com o que ele chama de multiplicidade, fenômeno que ele descreve em seu conterrâneo Carlo Emilio Gadda, que trata a novela contemporânea como enciclopédia, como método de conhecimento e, sobretudo, diz Calvino, como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo. Neste sentido ele poderia ter se apoiado tanto em Proust, como em Borges ou James Joyce, como ele mesmo reconhece; e eu incluiria também Lezama Lima que publicou Paradiso no mesmo ano em que Lacan publicou seus Escritos.
          Não lhes parece bem que se tome em conta os signos da leveza quando se pretende esburacar o real? E a rapidez não é imperativa quando se trata de restringir o momento de concluir o tempo de compreender ao instante de ver? A paixão não é aí algo que faz obstáculo ao desejo do analista?
          A exatidão não é outra coisa que um signo de leveza, algo com que se avalia o peso das almas as quais não sabemos nem mesmo quantas são. Quer dizer, antes que apelar a um controle obsessivo, é preciso evocar imagens nítidas, incisivas, memoráveis – e Calvino destaca o adjetivo “icástico” que quer dizer sem adornos; sem adornos desnecessários, eu diria.
          A visibilidade não é outra coisa do que a valorização do imaginário especular na relação com o outro. É alguma coisa como a pena de Maat que se requer para decompor o equilíbrio, do semelhante com o semelhante, nesta relação de Senhor com o Escravo.
          E a multiplicidade tem a ver com as possibilidades de enlace entre as instituições, mas também com as inúmeras possibilidades de leitura oferecidas pelo significante que cria sempre novos sentidos em seus novos enodamentos.
          Estes eram os temas das cinco conferências que estavam prontas para levar aos Estados Unidos. Mas Calvino morreu uma semana antes de partir.
          E a Sexta proposta? A que ficou na promessa? Sabemos apenas, através de Esther Calvino, que se chamaria “Consistência” e que em relação a este tema ele havia se referido ao Bartleby, de Herman Melville.
          Vejam que interessante: sua última proposta foi a que tomou em consideração a consistência, como se com ela fosse amarrar, dar o tope final em todas as outras. É lacaniano, não lhes parece? E para apoiar sua proposta, recorre ao Bartleby, the scrivner, subtitulado “Uma história de wall-street”, publicado em 1853. Seu subtítulo não deixa dúvidas de que a economia será o pano de fundo desta história; quanto ao seu título, está traduzido ao português como “Bartleby, O Escrivão”. Mas escutem só o que Melville diz de seu personagem: - “Eu acredito que não há nenhum material para uma completa e satisfatória biografia deste homem. É uma perda irreparável para a literatura. Bartleby era um desses seres de quem nada é determinável, exceto pelas fontes originais e no caso dele são muito poucas.”
          Quando pensávamos que com a ‘consistência’ ele viria com algo sólido, de peso... tudo ao contrário, outra vez a leveza e o vago como possibilidade de criação. Isto, a rigor, não nos surpreende pois sabemos a importância do engano para se dizer a verdade: o que o sujeito deseja, diz Lacan, se apresenta como aquilo que ele não quer. Com esta declaração quer me parecer que Calvino reconhece, joyceanamente poderíamos pensar - se o Prof. Donaldo concorda - que Melville se dá conta de que na vida mesmo não se pode tocar, mas que há por aí uma impossibilidade lógica rondando constantemente. É como se Melville, adotando a “filofosia” de Joyce que busca a iluminação de todo o corpo, rompesse com a filosofia de Dante que busca apenas a iluminação da cabeça, jwV, a luz,  versus a sojia, a sabedoria, e tentasse assim tocar a este real que é a vida. E a mim pareceu ainda mais interessante porque a consistência é o recurso lógico que possibilita a Lacan enodar os registros do real, do simbólico e do imaginário. 
          É assim que faço minhas as recomendações de Italo Calvino, esperando que elas possam ser tomadas em consideração tanto pela Reunião Lacanoamericana de Psicanálise, como pela Convergência, Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana.
          Muito obrigado.

   

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