UM DISCURSO ENTRE OUTROS? 

UMA CONTRIBUIÇÃO ÀS JORNADAS INTITULADAS

“A PSICOPATOLOGIA DA NOSSA ÉPOCA

PRECISA DO DISCURSO DO ANALISTA?”[1]

 

por

Luiz-Olyntho Telles da Silva

 

 
 

Esfinge – única mulher que não mente. 
MARIO DA SILVA BRITO, Cartola de mágico.

 
 

INTRODUÇÃO: A CONVOCATÓRIA 

Quero começar agradecendo às colegas da Práxis o convite para participar do trabalho destas jornadas. Agradeço por terem lembrado do meu nome quando se trata de discutir a vigência do discurso do analista. E autorizado pelos laços que me ligam às colegas convocantes, vou propor uma paráfrase ao título destas jornadas: a nossa psicopatologia (a dos analistas) precisa o discurso do analista? 

Pois é isso. Como podem ver, intitulo estas linhas com uma pergunta. Uma pergunta que vem a guisa de ensaio de resposta à outra pergunta. Não se diz que a um enigma deve-se responder com outro enigma? Pois certa vez encontrei, a este propósito, que Lacan, referindo-se ao mito de Édipo, chamava o monstro enigmático de ‘Quimera’! Vejam só! Sabemos que a Quimera não é a Esfinge! E então? Enquanto a Esfinge condensa uma cabeça e um tronco de mulher ao corpo de um leão alado, a Quimera é um híbrido de cabeça de Leão, corpo de cabra e cauda de serpente.


Teria se confundido? Sabemos por experiência a importância destas confusões: elas possibilitam uma abertura dos limites. Assim, fui consultar Junito Brandão e este me conta que o perigo maior a combater por parte do homem, externado pelo mito sob a forma de um monstro casualmente encontrado, é, na realidade, o inimigo quimérico, algo muito sério a ameaçar toda a nossa vida; e ele acrescenta, trata-se da “imaginação e a fantasia descontroladas, o perigo monstruoso que todo o homem possui dentro de si mesmo”[2]. Interessante! Mas é um bicho destes que vai propor uma questão aritmética ao homem? Estaremos frente a mais uma prosopopéia? Na falta de uma resposta convincente a pergunta ficara em aberto até que com a ajuda desta maravilha que é o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, encontro que, na heráldica, Quimera conota uma “figura com busto ou seios de mulher”. Isto então me leva a pensar que Lacan dá a isto que produz enigma um lugar no brasão da Psicanálise. De modo que vamos procurar manter as questões em aberto... 

Vejamos então a questão que nos congrega, tão fresca na cabeça de todos nós: “A psicopatologia de nossa época precisa do discurso do analista?” Observemos, contudo, que esta questão – com o status de título da Jornada – é apenas um destaque dentro do “Texto de Convocação”[3] que começa a se especificar por uma “ambivalência”: abrir ou não abrir o intervalo temporal que possibilita a emersão do inconsciente? E, claro, uma coisa é certa: podemos saber que, se a opção for por abrir, o 'temporal' estará presente, é lógico! A seguir, a cada parágrafo, a questão vai se especificando cada vez mais até se abrir, finalmente, em dez temas secundários, os chamados “subtemas”. É verdade que cada um destes subtítulos pode ser interpretado como uma espécie de consolidação, de ponta por onde a questão principal poderá voltar a se abrir. Estes dez itens caracterizam os pontos nodais por onde foi se desenvolvendo este importante texto de convocação o qual, sem dúvida, todos os que estamos aqui elogiamos. Terão notado, contudo, que um dos subtítulos se distinguia dos outros: no e-mail que recebi, dos dez, nove não estavam pontuados, no sentido de que não tinham ponto final; estavam abertos, como convém, eu diria. Apenas um deles mereceu uma pontuação: o de número sete mereceu um ponto de interrogação, ou seja, um ponto característico – outra vez – de abertura. É claro que deve haver justificativas léxico-gramaticais para tal, mas a mim, o quê importa é que este ponto de interrogação acompanha ao do título da jornada, um detalhe in-significante, quem sabe? 

A RESPOSTA 

Pois bem, já puderam escutar que o que capta minha atenção está aí, no número sete, afinal hoje é sábado, dia do descanso, do descanso de Deus, claro! Nós trabalhamos. É verdade também que o sete é o número da mentira! Mas, em todo o caso, é por aí que pretendo entrar. 

Terão reparado que em minha introdução, ao enfatizar a questão que nos convoca, com seus pontos de interrogação, tratei de abrir espaço para a resposta. Responder é uma maneira de trabalhar com a res posta, com a coisa posta. Lacan alude a isto quando pergunta – em Ste. Anne , no dia de Reis – se isto que tem por origem a res constitui a realidade? E esta é uma pergunta – continua Lacan, com propriedade – que diz respeito a tudo o que pode ser extraído da linguagem[4].

Se for verdade que uma boa pergunta contem pelo menos metade da resposta, então vale à pena examiná-la com cuidado, e uma das maneiras será tomando em consideração a presença da res na linguagem. Se quiserem uma justificativa metapsicológica, diria que a representação coisa não se perde na re[s]presentação palavra[5]. Dito de outro modo: trata-se de como detectar a presença do significante no discurso.

Assim, ao retomarmos a questão, no primeiro parágrafo da convocação, vemos que a mencionada ‘ambivalência’ não passa de um recurso de retórica. O texto que se segue nos permite ver, a posteriori, que seu conjunto só tem sentido se a opção for pela análise, vale dizer pela possibilidade de irrupção do temporal – lógico – se me permitem dizê-lo assim. 

E aqui, acredito, se pode justificar a questão que aparece classificada com o número sete: “O discurso da psicanálise é o discurso do analista?” 

O que tenho observado, em minhas leituras, é que embora o Dr. Lacan utilize as duas expressões, referindo-se ao mesmo matema para ambas, é mais freqüente vê-lo usar a expressão ‘discurso da psicanálise’.

Quando utiliza a versão ‘discurso do analista’, me parece que, em geral, é para falar de algo muito específico, é para falar da ação deste discurso como, por exemplo, no Seminário de 17 de dezembro de 1969, dedicado a’O Avesso da Psicanálise. Aí ele usa a expressão para discriminá-la do discurso do analisante com o qual – ele é bastante explícito – não se confunde[6]. Quer dizer, mesmo embora analista e analisante estejam na mesma circunscrição, seus discursos não são da mesma ordem! Se o que possibilita estes discursos é algo da ordem da transferência e da contratransferência, ou da transferência recíproca, como queiram – Freud dizia Übertragung e Gegenübertragung – não podemos esquecer a importância da manutenção de uma disparidade subjetiva entre analista e analisante. Se há ato, então não há relação sexual, como nos diz Lacan[7]. O discurso do analista, para merecer esta distinção, precisa estar dotado de uma certa especificidade e esta, neste momento, diria que consiste em estabelecer uma relação entre o sujeito e o significante, ligando assim o sujeito ao significante - não obstante a sua recusa - de modo a possibilitar sua participação na cadeia[8]. É assim que o analista agencia de modo mais eficiente o lugar que lhe é próprio. 

O texto que nos convoca é bastante explícito ainda ao caracterizar a circunscrição do inconsciente através de “diferentes níveis e avatares de articulação”. Estou de acordo. Em um texto já publicado[9] lembrei a relação dos avatares com as diversas encarnações dos deuses na Índia, especialmente com as reencarnações de Vixnu; quer dizer, quando falamos em avatares estamos falando nas encarnações do significante.

Por outro lado, diria que se o discurso do psicanalista se dá por oposição ao discurso do analisante, o discurso da psicanálise se dá por oposição ao discurso do amo, diferenciado também dos discursos da universidade e da histérica. Diria também que esta interpretação nos leva a pensar no discurso do analista como sendo um flash, um relâmpago no discurso da psicanálise. Se quiserem tomar esta afirmação como um corolário do tema oito – ‘Os efeitos de desvio ao fazer da psicanálise uma profissão’ – eu não farei oposição. Roberto Harari - a quem devo a compreensão dos conceitos fundamentais da psicanálise - dizia que ninguém deveria se dizer psicanalista, o psicanalista é um “sendo”, dizia ele querendo contrapor esta forma gerúndia ao psicanalisante de Lacan. Sem querer ser mais realista do que o real, diria que o analista o é tão somente nestes intervalos de abertura do inconsciente. 

O outro aspecto da questão é aquele que justificaria a vigência da psicanálise: sua necessariedade. O texto em apreço distingue a psicopatologia dos dias de Freud da desta época pós-moderna. A diferença? Enquanto as histéricas de Freud queriam falar do que se passava com o corpo, em nossa época (sic) “há uma indiferença com a fala (...) que se manifesta em atuações que permitem intervenções sobre o corpo, a partir do domínio, cada vez maior, da imagem.”! Quer dizer, se no período moderno a indiferença era com o corpo, hoje é com a fala. Certo? É uma maneira de dizer que enquanto Freud se fundava em um desvio da satisfação sexual, Lacan se fundamenta na ação do significante. Por coincidência, em entrevista recente publicada no jornal Zero Hora, Juan-David Nasio, ao responder à pergunta “Podemos considerar que tenha havido uma mudança de Freud até os nossos dias no que diz respeito aos pacientes?” assim se expressa: “Sim, acho que os pacientes mudaram. Os motivos de consulta, hoje, são diferentes. Existem muitas consultas sobre problemas mais claramente sexuais, problemas de casais, problemas do homem. Os homens consultam mais, as crianças consultam mais, os adolescentes consultam mais (... )”. Onde está a diferença destas formulações, poderiam perguntar-me? Afora o fato de que os homens e as crianças e os adolescentes consultem mais, o problema denunciado por Nasio é o mesmo que o denunciado por Freud. E não nos enganemos com a diferença entre Freud e Lacan: os problemas que ambos enfrentam são todos de ordem sexual! E mais, quando as histéricas de então diziam não saber o que aconteceu com ‘aquele’ braço paralisado, elas estavam falando, avant la letre, do imaginário lacaniano. 

Não lhes digo nada de novo ao dizer que cada época tem um olhar próprio. Mas e então, onde está a relevância da questão que nos convoca? No confronto do impossível com o necessário? 

Já na segunda metade da convocação, o texto pergunta se a psicanálise existe! E eu registro isto com um ponto de admiração! E logo a seguir pergunta também, paradoxalmente, no meu modo de entender, se os analistas vêm sustentando sua prática, quer dizer, a prática do discurso do analista! Continua o paradoxo: como é possível ser analista sem sustentar a prática do discurso do analista? 

Pois bem, confesso-lhes que a pergunta não me surpreende completamente. Este, aliás, é um dos motivos pelo qual especifico o discurso do analista no discurso da psicanálise. Discorrer sobre o discurso da psicanálise está facultado a qualquer um; agenciá-lo é privativo do psicanalista. E hoje em dia vemos muitos discorrendo sobre o discurso da psicanálise. As universidades formam doutores em psicanálise, o que é ótimo. É importante que se fale de Psicanálise. As coisas se complicam quando alguns supõem que isto é suficiente para tornar-se analista. Claro que também há os que crêem na suficiência da experiência analítica e passam a escrever bobagens, caso este que nos remete à questão da formação do analista. A análise do analista certamente é fundamental, mas não creio que seja suficiente para, quando na sua prática, poder discriminar os momentos em que deve fazer semblante de a – uma vez que o analista apenas opera como a, não é todo a[10]. 

Acredito que todos estes pontos levantados sejam de suma importância e mereçam cada um deles uma ampla discussão.

Mas há um outro ponto, contudo, o qual também me parece nodal. Este ponto surge como um pendant da dialética da ambivalência. Um ponto que diz respeito a todo o processo da análise e que está presente em todo o seu desenvolvimento, não só do início ao fim de cada sessão, mas está presente também desde as consultas prévias até o fim de análise. Trata-se da questão da demanda.

Para dizê-lo brevemente, trata-se do seguinte: como o significante não se representa a si mesmo, ele precisa de um lugar de representação, precisa de um lugar outro. Não lhe basta ser representante. Lembram do conceito de significante formulado por Lacan: significante é o que representa o sujeito para outro significante. E é neste ponto preciso que o analista, desde o lugar de resto, pode e deve desempenhar seu papel contribuindo para esta articulação significante. Diria mesmo que a formação do analista tem por meta um preparo para este momento. Mas para que tudo isto possa acontecer é necessário um movimento inicial: a demanda. E não creio que este movimento explícito deva ser do analista.

A mim parece muito elucidativa a figura do Cavalo de Tróia empregada por Lacan[11]: lá está ele com a barriga repleta de significantes prontos e preparados para serem articulados na conquista da polis. Mas tudo isto só será tornado possível por um sinal que venha de fora interromper o silêncio da noite. Este sinal, que pode ser mesmo um toc-toc-toc, como o que anuncia o início de um espetáculo teatral, tem o valor da demanda que autoriza o drama: podem vir, atenção, vai começar! 

Este movimento inicial tem de ser do analisante. Precisa ser do analisante. A espera deste movimento pode ser angustiante. E o será tanto mais angustiante quanto mais o analista depender deste movimento para sua sobrevivência.

E o que me parece nem sempre ficar claro ao analista principiante, ao zukunftige Analytiker, como dizia Freud[12], é que enquanto este movimento não surge o analista precisa ser paciente. 

Muito obrigado!

 
 

Notas:

[1] Texto apresentado às Jornadas  A PSICOPATOLOGIA DE NOSSA ÉPOCA PRECISA DO DISCURSO DO ANALISTA? Niterói, RJ, 26, 27 e 28 de outubro de 2001.

[2] BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. Petrópolis, Vozes, 1991.

[3] Texto de Convocação:

Para que, de início, fôssemos levados a nos defrontar com uma ambivalência**, colocamos o título de nossa Jornada (26, 27 e 28 de outubro de 2001) como pergunta: A PSICOPATOLOGIA DE NOSSA ÉPOCA PRECISA DO DISCURSO DO ANALISTA? Essa ambivalência podemos situá-la assim: por uma lado, é certo que alguém para viver não precisa abrir o intervalo temporal que faz emergir o inconsciente e sua lógica; por outro lado, é certo, também, que faz diferença, a respeito do que se entende por vida, que o sujeito do inconsciente se funde pelo ato de abertura de um lugar lógico. Intervalo que para ser efetivo, precisa, sob os diferentes níveis e avatares de articulação, ser circunscrito, em uma análise, condição sine qua non, para que se possa chegar às hiâncias que permitem pôr em jogo o modo de funcionamento do inconsciente.
Que conceito de psicopatologia está em jogo, quando se trata de estar em relação ao inconsciente, que a descoberta freudiana funda? Lacan diz, no Seminário 1, que Freud funda sua descoberta na apreensão fundamental de que os sintomas do neurótico revelam uma forma desviada de satisfação sexual. Demonstra com isso a função sexual dos sintomas por uma série de equivalências, a partir de sua clínica. Com essa base, sempre manteve que não era uma filosofia totalitária do mundo o que trazia com sua descoberta, mas sim uma teoria bem definida, fundada em um campo perfeitamente delimitado, inteiramente novo, que comporta um certo número de realidades psicopatológicas, que a Psicologia não estuda, como os sonhos, os lapsos, os esquecimentos, ou seja, as ratas, que perturbam certas funções ditas superiores como trabalha Lacan no Seminário 5. Neste Seminário, define a psicopatologia como ação do significante, cuja engrenagem é o princípio eficaz das formações do inconsciente. Detém-se ali nos mecanismos estruturais da condensação e do deslocamento, modos de operar do inconsciente que situam, na fala, o sujeito, enquanto efeito de linguagem: o que faz dizer além do que se tem a intenção de dizer, algo que, mais que a palavra, transmite em termos, tanto o que não se pode dizer, o indizível, como aquilo que não se quer dizer.

Nesta época, que chamamos pós-moderna, as manifestações sintomáticas se apresentam diferentes das que se apresentavam a Freud. Podemos dizer, com Lacan, que o que está fazendo diferença é o fato previsível de que a segregação tende a aumentar. Os pacientes que hoje chegam aos consultórios não chegam como as grandes histéricas chegavam ao consultório de Freud, o que aponta uma questão com a transferência, com o amor e com o saber. Na época de Freud, as histéricas queriam falar do que se passava com o corpo, no inconsciente. Em nossa época, há uma indiferença com a fala, em relação ao saber e à verdade, que se manifesta em atuações que permitem intervenções sobre o corpo, a partir do domínio, cada vez maior, da imagem. É certo que, se pensarmos em algum tipo de classificação clínica que permita abordar a diversidade dos casos, isso se dará de uma maneira, inteiramente nova, em relação a uma classificação psiquiátrica, seja esta a clássica ou a moderna, que o analista, até agora, jamais pôde abalar, pela razão de que os analistas não têm feito outra coisa que não seja continuar seguindo a classificação psiquiátrica. A primeira vista pode parecer que o que dissemos a respeito de nossa época vai contra a prática que Freud fez existir. Contudo, a nosso ver, isto aponta a que cada vez mais precisamos, logicamente, daquilo que, só por uma análise, se pode pôr em jogo em termos do que se trata quando, se trata de uma análise.

Nesse sentido, achamos fundamental distinguir o sintoma, quando referido já a um cerceamento do gozo no inconsciente, do sintomático. O sintoma, quando já há dele uma medida de gozo no inconsciente, supõe a repetição significante como função. Esta diferença é importante porque é somente quando se trata do sintoma, a nível dessa função da repetição, que podemos dizer que o analista poderá operar a esse nível e que, portanto, há abertura lógica ao  a  lacaniano, ponto preciso em que a prática  passa a ter conseqüências no real.

Lacan, no Seminário O Ato Psicanalítico, trabalha na direção de localizar um ponto de vacilação essencial, onde está o objeto  a, na história do sujeito, ou seja, onde o analista já está em tal momento e em um dado lugar nessa história, onde ele saberia o que é a transferência, uma vez que o pivô da transferência não passa, absolutamente, por sua pessoa, uma vez que há algo, o a, que já estava lá e que não por isso não precisa ser relançado.

Trata-se de situar, a esse nível, as diferentes maneiras do  a ( a  como mais valia, a como mais de gozar, a como astudado, a como causa de desejo) se pôr em jogo em relação à estrutura, o que reinterroga o grande Outro, o A. Diz Lacan, no Seminário 16, que, quando se trata da estrutura, esta deve ser tomada no sentido do mais real, do real mesmo, onde a estrutura aponta a causa do discurso, porque é só nesse nível que se inscreve a prática analítica. A pergunta que emerge aqui é a de saber se a psicanálise existe. A emergência desta pergunta situa um vazio que nos coloca em direção a uma outra pergunta, agora, a respeito dos analistas: o que lhes importa, como operação analítica, desde o lugar de onde sustentam sua prática? Vêm os analistas sustentando sua prática, do discurso do analista? Há algo, contudo, pelo qual a psicanálise se afirma indiscutivelmente por ser o sintoma do ponto do tempo ao que chegamos em termos de civilização. O que Lacan entende por um discurso que valha pode ser comparado a uma marca de cinzel, nesta matéria, da qual Lacan fala, quando fala do real do sujeito. Essa marca de cinzel se revela nisto que se chama a estrutura pelo modo em que isso cai, no que ele é. Se a marca de cinzel passa a alguma parte, as relações mudam de tal modo que o que não se via antes, se vê depois.
Se o que nós, os analistas, fazemos, opera, há conseqüências na estrutura: o sofrimento, o padecimento, ou seja, o pathos passam a ser um fato de discurso naquilo que encobre um dizer. Se não opera, o sujeito desse discurso não é mais que cancro crescente no meio do mundo; esse sujeito, sem dúvida, o faz vivente. É neste ponto, em relação ao pathos, que os analistas vêm fazendo desvios por não fazerem como Lacan diz que faz: “eu faço dizer o sofrimento como faço dizer a verdade”. A verdade essencialmente fala, ela fala eu (je) e ali vemos definidos dois campos limites: aquele onde o sujeito não se coloca mais que por ser efeito de significante e aquele onde há pathos do significante sem nenhuma estiva ainda feita em nosso discurso ao sujeito.
Se, para Lacan, o significante é o que não faz sujeito de si mesmo a esse pathos, por ser ele um fato de discurso, a experiência analítica vai muito mais longe que o ser que fala, enquanto que é o que se produz como homem do que se trata. Nesse nível, é preciso trabalhar entre o fato e o dito, entre o real e o dizer, porque o que não se pode dizer é designado no dizer por sua falta, e essa é a verdade. Por isso ela é sempre insinuada, mas ela, a verdade, pode-se inscrever de forma perfeitamente calculada, onde só ela está em seu lugar, entre as linhas; essa é sua substância. A verdade é precisamente o que padece do significante.

Fica a falha, para alguns, de que esse sujeito estaria em alguma parte. A falha é o processo da prática da estrutura e, quando se trata da estrutura, esta deve ser tomada no sentido do que é o mais real, digamos, que não vale a pena falar de outra coisa que do real, no qual o discurso mesmo tem conseqüências.

Nosso objetivo, ao fazer este texto, é situar alguns dos pontos de articulação que nos levaram a escolher o tema de nossa Jornada/2001.

Convidamos, aqueles que se interessem pelas questões da psicanálise, para que venham discutir esses pontos e trazer outros que considerem importantes, participando conosco de mais um momento de trabalho.

Para convocá-los, propomos alguns subtemas:

 
1- A psicopatologia psicanalítica


2- As formações do inconsciente

 
3- O sintoma na psicanálise

 
4- A função do significante

 
5- O significante não se representa a si mesmo

 
6- O a como efeito de linguagem

 
7- O discurso da psicanálise é o discurso do analista?

 
8- Os efeitos de desvio ao fazer da psicanálise uma profissão

 
9- O real lacaniano, a estrutura, exige, logicamente, que a prática seja discursiva

 
10- O sofrimento é um fato de discurso, quando há um dizer

 
Niterói, 12 de julho de 2001. Atenciosamente, Iaci Torres Pádua / P/Secretaria de Encontros e Jornadas / Práxis Lacaniana.

* Texto produzido pelos membros da Escola.

**As palavras e frases destacadas em azul foram mencionadas no texto.

 

[4] LACAN, Jacques. ...Ou Pire. Seminário 19. (O Saber do Psicanalista – Falas em Ste. Anne ). Aula 3 de 6 de janeiro de 1972, Inédito.

[5] LACAN, Jacques, As formações do Inconsciente. Seminário 5. Especialmente a aula de 23 de abril de 1958, Versão inédita.

[6] LACAN, Jacques. El reverso del psicoanálisis. Seminario 17. Aula 4. El amo y la histérica. 17 de diciembre de 1969 (Versión da Escuela Freudiana de Buenos Aires).

[7] LACAN, Jacques. De um Outro ao outro. Seminário 16. Aula 22, de 4 de junio de 1969. (versión de la EFBA ). Inédito.

[8] LACAN, Jacques. As formações do inconsciente. Seminário 5. Aula de 12 de fevereiro de 1958. Versão anônima ao português.

[9] TELLES DA SILVA, Luiz-Olyntho. “Psicanálise: profissão impossível, discurso necessário”. In FREUD / LACAN: O desvelamento do sujeito. Porto Alegre, AGE, pp. 113-128. 1999.

[10] LACAN, Jacques. El acto psicoanalítico. Seminario 15. clase 9, de 7 de febrero de 1968. (Versión de la EFBA ). Inédito.

[11] LACAN, Jacques. El reverso del psicoanálisis. Seminario 17. Clase 4. El amo y la histérica. 17 de diciembre de 1969 (Versión da Escuela Freudiana de Buenos Aires).

[12] . FREUD, S. Die endliche und die unendliche Analyse [1937], Sigmund Freud Werkausgabe in zwei Banden. Band 1. S.Fischer, Frankfurt am Main, 1978, p. 549.

 

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