Luiz-Olyntho Telles da Silva
Psicanalista |
MR. HAMM VISLUMBRA O PAMPA
Apresentação @ |
Uma leitura sobre Credo quia absurdum
é uma expressão muito conhecida, usada com frequência por crentes e ateus.
Não raro a encontramos atribuída a Santo Agostinho, pois nas suas Confissões
ele faz referência ao raciocínio implícito no apotegma. A origem primeira
da frase por certo está perdida, embora haja quem a relacione também a Tertuliano
– De carne Christi, 5.4 – onde vamos encontrar a expressão que nos
interessa: Credibile cuia ineptum est, “crível porque ilógico”. Assim
é o teatro de Beckett.
Ele é considerado absurdo por ferir as regras da lógica. Por isso, Martin Esslin1 coloca Beckett ao lado de Arrabal, Ionesco e Adamov. O absurdo não pode ser lido desde os parâmetros da lógica clássica. Requer-se para tanto uma outra lógica, capaz de dar conta das contradições e dos paradoxos. Em Fim de jogo – que assisti no domingo (26/08/2007), no TEPA2, dirigido por Luiz Paulo Vasconcellos –, o absurdo impera: o cenário consiste de apenas uma peça pequena, praticamente isolada do exterior onde parece não haver mais vida. O contato extra muros é apenas visual, através de duas janelas, colocadas ao alto de paredes opostas, dando para os bastidores, e alcançadas apenas com o auxílio de uma escada. Para avistar a paisagem é preciso de uma luneta. Não seria um absurdo se fosse uma prisão, mas trata-se de uma casa de família. Alude-se a uma cozinha onde reina um rato! O protagonista chama-se Hamm, magnificamente representado por Zé Adão Barbosa. Está velho, paralítico e cego. É o patrão de um filho adotivo, Clov, o antagonista, interpretado com maestria por Jeffie Lopes. Seu problema nas pernas o impede de sentar! Secundariamente, entram em cena – se é que se pode dizer assim –, outros dois personagens, Nagg e Nell, respectivamente pai e mãe de Hamm. Eles não têm pernas; perderam-nas em um ridículo acidente de bicicleta. Na verdade Nagg e Nell – interpretados de modo irretocável respectivamente por Vinicius Meneguzzi e Crissiani Sgarbi –, passam o espetáculo inteiro enterrados em latões como estes que, quando não servem mais para por gasolina ou óleo, se usam para lixo. Suas raras aparições são marcadas por um humor amargo. Reencontrada sua lógica própria, o texto aponta, através de metáforas precisas, à tragédia das relações, ao vazio e ao contraponto entre a esperança e a desesperança, um quadro de nossa desumana condição. Pensar no mito de Sísifo, o tempo todo a fazer e refazer as coisas, não será um despropósito. A tradução do texto é de Fábio de Souza Andrade e, na edição da Cosac Naify, 2002, a proposta para o título – escrito originalmente em francês, Fin de partie – é Fim de partida. A modificação para Fim de jogo se justifica: os diálogos em linhas alternadas, na medida em que caracterizam o recurso da stichomythia, apropriado para caracterizar disputas vigorosas e a intensidade emocional das cenas, dá esta característica de jogo. Mas Beckett é também um leitor de Joyce, e o estilo de Finnegans Wake não pode ser desconsiderado. Partida é jogo e começo, mas é também morte e engano. E o título da peça já faz pensar em algo que morre na casca, que termina antes de começar. Por outro lado, fim é também “objetivo”, e é isto que irá prender nossa atenção: o objeto da partida, o objeto do jogo! Somos então levados a nos interessar pelos agonistas, pois não há duvida de que eles competem. Em carta a Alan Schneider, de 29 de dezembro de 1957, Beckett caracteriza a relação de Hamm e Clov com a frase nec tecum, nec sine te, ruim contigo, pior semtigo! Na verdade, trata-se de uma versão pessoal de uma frase de Ovídio (Amores, 3, 11, 38), nec sine te nec tecum vivere possum, não posso viver sem ti nem contigo. O mesmo se pode dizer da relação de Hamm com seus pais, e também desses entre si. Numa das cenas, Nagg, meio corpo para fora de seu latão, bate na tampa do latão de Nell que se entreabre, deixando aparecer os dedos de longas unhas, e depois uma cabeça muito branca coberta com uma touca, para atender: - Que foi meu velho? Hora do amor? Então, os latões, por mais agressivos que pareçam, são um eufemismo para a cama? Eles tentam beijar-se, mas a distância os impede. O amor é impossível! A função dos pais é a de meros procriadores. Exercida, que passem ao lixo! São personagens estranhos, exóticos mesmo. Comecemos nos perguntando por seus nomes: Hamm? Para um ator que interprete as cenas de modo exagerado ou afetado, se diz hamming. Daí dizer-se ham para um mau ator, para um canastrão. Hamm, de certo modo, é um canastrão frente a vida. Tempo de lembrar outro personagem, quase despercebido, um cão de pelúcia, perneta, sem sexo e sem fita no pescoço. Para uma arma sem cão, se diz hammerless. Sim, Hamm é uma arma, é um martelo (hammer) a martelar a todos todo o tempo, a começar por Clov. Cloves são os cravos-da-índia, mas também se pode ler aí os cravos com que pregaram Cristo à cruz. Clov[e] é o inseparável tempero do ham, do presunto. E presunto se diz ham por derivação do pernil de onde é feito, da perna do porco, e é no ham, quer dizer, na parte posterior da coxa, onde Clov tem o problema que o impede de sentar-se. O diálogo vai se fazendo carne. Mas Hamm[er] também bate em Nell. O nome da mãe é homofônico com nail, os pregos propriamente ditos. E nail é, antes de tudo, a unha, nail of finger, as unhas dos dedos, tão marcadas tanto em Nell como em Nagg. Nagged é alguém que foi ralhado, censurado, aborrecido. Nagg é assim, embora encubra tudo com um certo humor, amargo. Mas Beckett é também um leitor de Shakespeare, e isso nos leva a ler em Hamm, Hamlet. Hamlet – nome irônico para um príncipe –, cuja dificuldade é vingar a morte de um pai que ele queria morto! Fim de partida (ou de jogo) não é sem a multidão de espectadores, conforme a risível fala de Clov. E não só porque estão ali para assistir a peça. Suas lembranças pessoais precisam entrar em jogo para encontrar sentido nos parlamentos dos personagens. Logo de início, por exemplo, quando Hamm pede a Clov para aprontá-lo para deitar, Clov, que acabara de levantá-lo, exclama: - Não posso ficar deitando e levantando você a cada cinco minutos, tenho o que fazer. Parecia a história vivida por uma senhora, em uma UTI de nossa cidade. Internada por desidratação, ela pedia água com freqüência e a enfermeira respondia, do mesmo modo: não podia ficar lhe dando água a cada cinco minutos! O silêncio tem uma função importante. Ele é introduzido pelas inúmeras pausas. Quem assistiu alguma apresentação da peça na Europa, antes de assistir a de Luiz Paulo Vasconcellos, poderá ter percebido a encenação européia um pouco mais lenta, justamente por uma maior valorização dos silêncios. Mas na nossa, uma possível valorização maior da stichomythia, só lhe dá mais agilidade e dinamismo sem perder em nada a importância do silêncio imposto pelas pausas. Pelo contrário, o contraponto entre o silêncio e os diálogos vivazes fica mais evidente. Mas o silêncio não fica reduzido a isso. O cenário tem aí uma importância fundamental. O abrigo onde os personagens estão encerrados abriga-se a meio caminho entre o mar, um mar já sem marés, silente, onde um farol terminou de afundar, e o – permitam-me dizer assim –, o pampa. O pampa sem fim, o pampa sonhado. Digo sonhado porque as referências textuais e da realidade são outras. No diálogo entre Nagg e Nell, quando aparecem as reminiscências, lembram de um inacreditável passeio ao lago de Como, associado ao desvalorizado e quase risível acidente de bicicleta em que perderam as pernas, nas Ardenas, perto de Sedan, provavelmente à margem do rio Mosa, que não é nenhum riacho. Beckett participou da 2ª Guerra Mundial aí, ao norte da França, nas Ardenas, e provavelmente a viu completamente destruída e silenciosa. O lago de Como, no sopé dos Alpes, atravessado pelo rio Ada, é um lugar de sonho. Os namorados sonham passar aí sua lua-de-mel. Na lembrança, ambos os lugares são solitários, desabitados e silenciosos. Não há maior metáfora para a desesperança do que a perda das pernas; sem elas já não há para onde ir. E reconhecida a impotência, para dar curso a um resto de esperança, apela-se a um messias. Um messias nos pampas. Por quê não? Luiz Paulo Vasconcellos introduz uma pequena modificação que permite ler assim. Quando Hamm lembra de um louco, conhecido em um hospício, acrescenta o passeio até à janela para ver as velas dos pesqueiros – bonitas! Mas ao dizer isso, ele está inspirado – no texto de Beckett –, por um croque usado como vara, não para prender, não para ancorar, mas para empurrar seu barco-poltrona pelo riocorrente da vida. E na peça de Vasconcellos o croque é substituído por um ancinho de jardineiro, com a mesma função. Se estivermos com a luneta na mão, poderemos gritar: terra à vista! Atrás das coxilhas ainda pode haver verde! Agora o silêncio se faz voz. É chegado o momento de Hamm exigi-lo para seu conto de natal. Não é um Zaratustra na ânsia de mãos que se estendam para ele. Não anuncia o Super-homem! É sim o ham canastrão falando para o audiente Nagg comprado por um caramelo imaginário: O homem rastejava lentamente na minha direção, arrastando-se sobre o ventre. Pelo que se segue, adivinha-se um homem já rastejante há dias, sempre na mesma história. Afinal, que tipo de movimento se poderia esperar de um paralítico, filho de pais sem pernas? Parece um Pilatos exclamando: - Ecce homo! depois de havê-lo maltratado. Um suplicante e um tirano. Entre os dois, os Alpes gelados. O rastejante suplica pão para o filho a sua espera em uma Kov [a]. Pão, não! Talvez um quilo e meio de cevada que, ao final, não servirá para nada. A morte é certa. O que se pode fazer é cuidar-se para poder morrer tranquilamente. Então tudo tem de ser medido, cuidadosamente, para ser conhecido. Para tanto, recorra-se aos heliômetros, para quando o sol se for; aos anemômetros para marcar a perda da velocidade e da direção do vento; e aos higrômetros para saber da secura. Sem luneta, impossível, e um microscópio por certo ajudaria, embora nada disso trouxesse de volta as deliciosas iguarias da infância, nem mesmo a turca rahat-lukum. Mas enfim, a preocupação é com o menino. Rezemos ao Senhor, concluí Hamm. O pagamento da escuta e a perseguição ao rato podem ficar para depois. Antes, rezemos ao Senhor, insiste Hamm. É tanta a preocupação com a criança que ela aparece, a uma distância de precisos setenta... e quatro metros. Vista através da luneta - potentíssima a ponto de permitir ver seu olhar - a criança vê, com olhos de Moisés agonizante, seu próprio umbigo! Então é isso! Moisés já foi uma criança. Nagg já foi uma criança. Clov já foi uma criança e Nell, por certo, também. A distância de dez horas, à cavalo, ou de três dias inteiros, ou de quarenta anos pelo deserto, é a distância de uma vida, ou mesmo a distância da vida. O umbigo é a cicatriz de nossa herança, de nosso passado. Do futuro, alcançamos tão só ao vislumbre. Fim de partida. Fim de jogo. Luiz-Olyntho
Telles da Silva
_______________Agosto de 2007. [1] ESSLIN, Martin. The Theatre of the absurd. Random House, 3ª Ed., 2004. [2] Teatro Escola de Porto Alegre. |
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