Luiz-Olyntho
Telles da Silva Psicanalista |
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MEMÓRIAS DA FEBRE
de José Eduardo Degrazia Guaratinguetá, SP: Penalux, 2023, 118p. Luiz-Olyntho Telles da Silva
Setembro de 2022
A POESIA
É UMA BUSCA INCESSANTE PELA COMPREENSÃO DA VIDA, e os poetas,
para isso, valem-se de todos os estímulos para esmiuçá-la.
O primeiro desses, imagino, foram as luzes. Quando Moisés, mil anos
antes de nossa era, abriu o Gênesis com o fiat lux de Deus,
por certo todas as sinapses de seu cérebro estavam tão iluminadas
como se fora uma noite estrelada. Para Hesíodo, a iluminação
vinha-lhe das Musas. Afinal, elas moravam nos fundos da casa de seus pais,
no Monte Hélicon, e por trás dele nascia o sol. Higino, este
sábio egípcio do primeiro século a.C, inspirava-se com
as pequenas coisas: certo dia, ao passar por um riacho de águas transparentes,
por exemplo, teve sua atenção prendida por algum torrão
jacente no fundo do caudal e logo atribuiu sua própria visão
a um personagem, o Cuidado. Colheu-o, começou a modelá-lo e,
enquanto pensava no que estava fazendo, aproximando-se Júpiter, pediu
ao deus que lhe infundisse um espírito em seu modelo de argila, e
assim foi feito. Mas quando Cuidado quis dar-lhe o seu próprio nome
à obra, Júpiter o proibiu: o seu nome é que seria o
dele. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam sobre essa nomeação,
ergueu-se a Terra (Tellus) e pediu que a obra fosse nomeada com o seu nome,
pois ela havia lhe dado um pedaço de seu corpo. Sem acordo entre eles,
pediram a Saturno para julgar o caso, o qual lhes deu a seguinte sentença,
breve e justa: — Tu, Júpiter, por teres soprado o espírito,
recebê-lo-ás em sua morte; tu, Terra, por haveres oferecido
o corpo, receberás o corpo; porém, por ter sido Cuidado quem
primeiro deu forma a este ser, que, enquanto viva, pertença a ele.
E quanto ao litígio sobre o nome, que se chame homo, visto que veio
do húmus.
Essas
foram as primeiras imagens que me vieram à mente após a primeira
leitura de Memórias da Febre, de José Eduardo Degrazia.
A luz e a sombra, as musas e o cuidado com o homem estão presentes
em praticamente todos os seus poemas.
O poeta
sabe que a imaginação também está composta pelo
húmus de que é feito e, por isso, precisa regá-la para
dar seus frutos. Então, quando cai uma chuva fininha no telhado da
casa, como diz o segundo verso de seu primeiro poema – Sem Título
–, nessa delicada metáfora podemos ler também, no telhado,
a imaginação banhada pela inspiração. É
o momento de o poeta mostrar sua obra. Essa alegoria da chuva, aliás,
também serviu a Dante. Posso vê-lo, agora, nos momentos febris
da composição de sua Comédia: naqueles dias do século
XIV, certamente também caíra uma chuva fininha, dessas que
obrigam ao recolhimento; são dessas ocasiões quando precisamos
de resguardo e, muitas vezes, de um refúgio no interior de nós
mesmos. Dante já ia adiantado em sua obra, pela metade do Purgatório,
quando, no verso 25 do Canto XVII, às voltas com a imagem de Procne,
transformada em rouxinol por causa de amores difíceis, e também
com a de Hamã que, querendo matar os judeus, foi por eles enforcado,
percebe que aquela garoa fininha, entrevista pela janela, também havia
caído dentro da alta fantasia. Poi piove dentro a l’alta fantasia,
registrou o vate, enquanto Ítalo Eugênio Mauro traduz aí
a força da imaginação, e Xavier Pinheiro interpreta
no mesmo verso a revelação de um êxtase, como expressão
do encontro de uma boa figura. Para Degrazia, a chuva é sempre uma
alegoria da inspiração, como podemos ver também nos
poemas Tarde na Infância, Às Canções,
A Estação das Chuvas, Bebo o vinho, A
Doce Ilusão de Ser Amado e Desilusão. Após
reconhecer que, depois da chuva, há um momento de silêncio,
tal o de depois do amor, o poeta, iluminado, pode dizer: — assim são
feitas as canções [p.5], e elas nunca mentem de verdade [p.82].
A linguagem poética aproxima as coisas da mente: a vida se aninha
no meu peito – diz ele –, como uma gata [p.22].
Demoremo-nos
um pouco mais na figura de Dante: a metamorfose da princesa Procne teve por
origem a impetuosidade desmedida do rei Tereu, quem, por castigo, foi demudado
em um mocho. E então pergunto: — Será ele, no terceiro verso de
Sem título, encolhido de frio em um terreno baldio? Verdade, temos
de lembrar: o mocho é conhecido também como a Coruja de Atena,
a deusa da sabedoria. E nos poemas degrazianos o saber poético está
na base de sua composição. Quando ele abre o primeiro dos poemas
de sua coleção com o verso
Hoje
o dia não está para grandiloquência,
é
preciso lê-lo com os recursos da lógica, disciplina a nos ensinar
que não pode ser negado o que não foi previamente afirmado.
E, nesse caso, qual será a afirmação primordial? Pois
minha aposta para a chave dessa leitura vai para o poema Versos Antigos.
No poema Memórias da Febre [p.26-7] ele nos dá o argumento
para seu livro: seu fazer poético vem de longe, desde sempre sofreu
esta febre lacustre; desde sempre, como repete sua anáfora, ardeu
– como um novo Jerônimo – ao fogo do sol do deserto [p.26 e 39]. É
poeta nascitur [ver também p.33]. Contudo, em Versos
Antigos [p.95] está a confissão de que a cada leitura do
seu Quintana, andando pelas periferias, do seu idílico Vinícius,
e do seu Bandeira, vagando pelos charcos onde coaxa um sapo, mais a de António
Nobre – que escreveu o livro mais triste de Portugal e cuja nostalgia está
voltada para as figuras simples do povo, às quais dá voz –,
sente-a sempre como se fosse a primeira vez. E é verdade. Depois que
o leitor perde a ingenuidade das primeiras investidas e começa a tomar
a atividade em sério, logo aprende que cada leitura será sempre
uma nova leitura, e isso porque a cada uma delas abrem-se sempre novas nuanças,
novas perspectivas. A esses poetas Degrazia lhes dá um lugar especial:
Manuel Bandeira é um modernista da primeira fase, movimento que, entre
tantas outras coisas, rompe o aprisionamento métrico criticado por
Buffon; Vinícius de Morais e Mario Quintana pertencem à segunda
geração modernista, o que implica busca pela liberdade de expressão
e pela simplicidade, procurando na linguagem corrente o material para a construção
das metáforas carregadas de sentidos. Essa geração,
também conhecida como Geração de 30, marcada por conflitos
sociais, a Revolução de 30, a Constitucionalista de 32, a Segunda
Guerra Mundial, refletiu sobre o mundo contemporâneo, tanto motivada
pelas questões sociopolíticas como pelos conflitos espirituais,
e optou por uma linguagem mais simples. A afirmação primeira,
aqui, em Sem Título, então, está construída
por antítese – esta figura uma vez tão usada pela escola conceptista –, e poderia ser lida assim:
Hoje
o dia está, sim, para a simplicidade.
Valorizemos
sua proposta, que se abra mão dos títulos. Um autor tem de
valer por sua obra. Que se dê atenção à simplicidade
de uma sanga campeira, ao seu marulho rutilante e gerador de vida: como poderia
ter dito Higino, nela se abebera a criação [ver p.40]. Os estímulos
para a poesia estão espalhados pelo mundo, dispersos pelos lençóis
de bruma, estas grandes extensões, tantas vezes subterrâneas,
como uma vez também disse Dostoievski. Embora cada coisa do mundo
possa servir de estímulo, cada uma delas pode ser multiplicada pelas
suas infinitas faces, como podemos ler em A Curvatura, na qual a anáfora,
a curva do seio, desdobra-se desde a onda a rolar na areia até
o eclipse, quando a boca do amante a cobre de beijos [p.91]. Vem daí
o sol que iluminará o mundo.
Em um
misto de excitação eufórica e de agitação
motora, características da febre, o poeta, em Dias passados,
revê, como em um rève, em um sonho, as formas de sua
criação poética:
Há dias na minha vida que passaram como sombra O sol
de nosso poeta é a memória. Na areia clara, entre as pedras,
a água é um cristal que se quebra [p.33] e, em
cada um desses fragmentos pós modernos, surge, da recordação,
um retrato. Alcançá-la, porém, nem sempre é fácil.
Como a mariposa em busca da luz, esbarramos na vidraça [p.3].
A memória leva-nos à infância, mas também à
morte, como a longa viagem dos pequenos detritos para o rio e para o mar,
para não voltar mais [p.7]. Nem os que se foram antes do tempo,
nem os que se foram puros voltarão [p.8]. É uma preocupação
de sempre. Séculos atrás, e noutro meridiano, Omar Khayyam
entra em uma mesquita e pergunta a um ancião pelos que se foram, e
ele responde: — Não te preocupes, não voltarão.
O importante
– depreendemos desses poemas –, é a valorização da vida
enquanto estamos nela. Uma pena os que não ousam, aponta-nos em Os
Delicados. É como se não reconhecessem a verdade de um
antigo brocardo: Vive mais quem ousa mais. Lembremos que ousar tem
uma certa consonância com o substantivo grego ousia (οủσια),
formado a partir do verbo ser, einai (εἷναι); quer dizer, é
como se dissesse que, para ser, é preciso ousar, arriscar-se pelo
escuro desconhecido. E a vida, ela começa com a manhã dos homéricos
róseos dedos [p.60] e ele a quer desvelada, sem sono, bem acordada,
ansiosa de acontecimentos [p.15]. O homem precisa do extraordinário
para dar sentido à vida.
Em Nuvens,
Degrazia é categórico: a vida é feita de claro e
escuro [p.50]. Para ele, o amanhecer se abre como pétala desperta
[p.18], precedida pelo cantar dos galos [p.37] (em grego, alektryon).
São eles, gritando de um a outro, como nos versos de João Cabral
de Melo Neto, que vão tecendo a manhã. Ao anunciar a aproximação
da luz, o galo repele as más influências da noite e, colocado
no cimo das igrejas, traduz o sol, o Cristo vencedor das trevas e da morte.
Diferente do mito de Ares e Afrodite, o raio de luz que iriza o cabelo da
moça, vivência também de Dante e de Bilac, serve-lhe
para levar a lembrança de um rosto, para sempre. Muitos, contudo –
não deixa de perceber –, tendo começado nas duras manhãs
de inverno, não mais estarão aqui nas límpidas manhãs
de verão do próximo ano [p.67].
A tarde
é o tempo do retorno à infância [p.19-20], tempo de inspirações.
Ao lembrar, parece-lhe mesmo que esta mergulhava inteira no tanque de tinta
rubra do ocaso [p.72]. E recordo das [...] tardes de novena, de seu
António Nobre, em A Poesia de Outono:
Tardes de sonho em que a poesia escorre Chegada
a noite, se lhe serve de inspiração, também lembra o
adeus e a morte [p.80]. E, aproximando-se ao final, reconhece, em Nem
Antes Nem Depois:
A vida e a morte estão próximas, O hálito
é o sopro de Júpiter, mas é também o havel do
Eclesiastes. O vapor, o sopro, a mistura de água, sombra e fumaça
que se transforma na voz e, na poesia hebraica, evoca a fragilidade humana;
na Bíblia está traduzido como vaidade e, para Coelet, seu narrador,
evoca o ser, o ilusório das coisas e a decepção que
isso provoca nos homens. E então, dando voltas ao mundo, depois de
ter visto o amor acender cores no rosto das mulheres [p.77], lembra quando
Sentia em mim toda a maravilha do entardecerE então, nas suas sábias e líricas palavras: A vida e a morte, a existência toda |