Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

 




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AS BARBAS DE DANTE

Luiz-Olyntho Telles da Silva

janeiro, 2025

 

Preserve-nos também dos santos. Muito frequentemente eles têm sido uma provação para a Igreja antes de se tornarem sua glória.

(GEORGES BERNANOS, Diário de um Pároco de Aldeia.)

 

Dentre as inúmeras histórias que ouvimos, ou lemos, durante o decorrer de nossa vida, têm algumas habilíssimas em desviar nossa atenção daquilo que realmente importa. Uma delas me aconteceu durante uma visita a Orvieto, na Úmbria, uma pequena cidade construída sobre o cume de uma montanha, como era costume das urbes medievais. Uma medida de proteção.

A visita obrigatória era à Catedral, uma obra do final do século XIV. E quando falamos da construção de igrejas, fica implícito que as datas carecem de precisão. Como para a construção de qualquer obra importante, principalmente aquelas para homenagear os santos, as paróquias dependem sempre das boas safras. Tanto é verdade que o fato lembrado agora para lhes contar teria acontecido cerca de um século depois de seu término oficial, por volta de 1500, a mesma data de quando o Brasil estava sendo descoberto.

A obrigação da visita vinha de uma leitura de Freud. No primeiro capítulo de A psicopatologia da vida cotidiana, de 1901, ao falar sobre o esquecimento de nomes próprios, ele conta um desses olvidos. Acontecera com ele mesmo. Depois, ao longo de sua volumosa obra, ele o retoma quatro ou cinco vezes, desde diferentes perspectivas, o que por certo ajudou-me a perceber aí algo importante e guardá-lo na memória.

Nessa primeira citação, o episódio ocorre em uma viagem de trem, ao regressar de umas férias na Itália, quando, entre outros lugares, estivera em Orvieto. Aí, ele ficara particularmente impressionado com os afrescos da cúpula da Catedral pintados por... pintados por... e o nome que ele queria dizer, que ele queria contar a seu interlocutor, não lhe veio à mente antes de lhe ter sido soprada por este mesmo companheiro eventual, cuja aproximação se dera pelo acaso, um senhor culto como ele mesmo esclarece. Antes de ouvir o nome do pintor, ele estava em dúvida se o artista teria sido Boticelli ou Boltrafio, mas, ao ouvir, quase como se fora uma interjeição, sua alcunha: — Signorelli!? – logo se lembrou de seu primeiro nome: — Luca. Sim, Luca Signorelli! É verdade que sua preocupação, naquele relato, era com o esquecimento, e é também verdade que, quanto às pinturas que o haviam fascinado, ele foi muito sucinto. — Os afrescos são sobre As Últimas Quatro Coisas, disse ele. E nada mais!

Agora, eu também estava ali, naquela Catedral. Magnífica! Dedicada à Virgem Maria. Desde as quatro colunas na entrada, com os baixos-relevos retratando cenas do Antigo e do Novo Testamento, a tentação de Eva pela serpente... ela deslumbrava; a nave central com seus vitrais encimados às peças de alabastro; o enorme afresco da Madonna Entronada; e as naves laterais, sendo a do norte dedicada ao Corporal, cuja relíquia, ainda com as manchas do sangue caído de uma hóstia, na hora da Eucaristia, era guardada em um precioso relicário de prata, bem ao centro da Capela, cujas paredes estão revestidas de belos afrescos, entre outras obras de arte.  Tudo era perfeição. Ao sul, mencionada por Freud, está a Capela dedicada àquelas quatro etapas finais da peregrinação humana: a morte, o julgamento, o céu e o inferno. É a Capela da Madonna di San Brizio. O interlocutor inteligente de Freud, e o próprio Freud, estavam certos. Luca Signorelli era responsável por tamanha beleza, mas não era o único! Os afrescos tiveram também outros pintores, como veremos em seguida.

Após a demorada visita, fui conhecer o Museu Etrusco, situado logo à sua frente. E aí, depois de ter visto tantas pedras, muito parecidas entre si, tendo me dirigido a uma janela do segundo piso para ter uma vista mais ampla da Catedral, aproximou-se um dos funcionários do Museu, muito gentil, que minutos antes me dera explicações não muito elucidativas sobre as características etruscas daquelas pedras, características, aliás, bem próprias de toda aquela região, mas que eu não alcançava discernir. E aí, apontando para uma grande construção ao lado direito da Catedral, ao lado sul, ele, o guia, disse-me ser o Convento das Irmãs cuidadoras da Igreja. Eu sabia que, ao longo dos séculos, aquele templo havia sofrido muitas reformas e acréscimos, mas não sabia que a última havia sido bem recente, no começo do ano anterior, para ser mais exato, acrescentou o guia. E então, depois de olhar para os lados, para ver se ninguém mais o escutava, segredou-me uma fofoca, na verdade conhecida por toda a comunidade: — Pois imagine, continuou ele, com um ar maroto, que, ao final da obra, a Madre Superiora do Convento, a mesma que, durante a reforma, abrigara o arquiteto, e que era muito bonita, e que foi sua anfitriã durante todo o tempo de sua estada, fugiu com ele! E dava uns risinhos com a mão sobre a boca.

Os arroubos de amor sempre me cativaram e este, então, prendeu minha atenção por tanto tempo que quase ia esquecendo os comentários de outro guia, tão mais importantes. Acontece que a repetição da história me tomou por completo. Aventuras amorosas de religiosos não eram, para mim, exatamente uma novidade. É que me lembrei de uma ocorrida justamente com o patrono da Capela di San Brizio, que começara sua vida religiosa, depois de catecúmeno, como diácono de São Martinho de Tours. O que se conta é que a monja que lavava suas roupas certo dia apareceu grávida e Brício foi anunciado como pai. Impulsivo que era, negou com todas as suas forças e, para provar suas palavras, convocou o bebê, de apenas trinta dias, para dizer se fora ele a engendrá-lo. Trouxeram o menino e este, alto e bom som, negou ter sido Brício. Contudo, ninguém deu mostras de haver acreditado em suas palavras, dando fé, antes, ao embuste, o que levou Brício a passar maus pedaços. A bem da verdade, devo dizer que essa Capela foi batizada com o nome desse santo bem depois, já no início do século XVII, quando o ícone da Virgem Maria e a Criança, todos os dois vestidos de negro, foram aí colocados.

Quanto ao guia que me contou as histórias dessa Capela, devo lembrar que ele não era precisamente um guia, e sim um subdiácono daquela paróquia. Era um dos eclesiásticos dedicados aos serviços sacerdotais do Santuário e este, em particular, era encantado pela Capela da Madonna di San Brizio.

Aconteceu como que por acaso. Absorvido pelos afrescos da Capela nem percebi quando o padre Gigio (foi assim que ele se apresentou), encanecido, aproximou-se, com um discreto comentário que logo nos acumpliciou: — Bellissimo! Non é vero? Sim, era verdade, belíssimos. A partir daí, quiçá pela receptividade expressa por meu comentário, ele – um verdadeiro conosseur –, passou a comentar comigo detalhes das obras que até então me eram desconhecidos.

Os frescos mais recentes da abóbada eram mesmo de Signorelli, contudo, eles estavam conforme a um plano inicial elaborado por Fra Angélico para os temas da abóbada. Com a ajuda de outros pintores, especialmente de Benozzo Gozzoli, o mesmo Fra Angélico pintou o Cristo do Juízo e Anjos e Profetas. Criação de Luca Signorelli foram os afrescos mais recentes pintados cinquenta anos mais tarde, quando se ocupou da pintura do Apocalipse e do Juízo Final. Dessa época são também os murais criados por ele e inspirados na Comédia, de Dante. Ali estão O Sermão e os Atos do Anticristo, a Destruição do Mundo, a Ressurreição da Carne, Os Condenados, Os eleitos, o Paraíso, o Inferno e também retratos de alguns poetas, como o do latino Publius Papinius Statius, alguns franceses, e, especialmente, o retrato de Dante Alighieri, um dos poucos existentes, porque, em vida, nunca foi retratado. Nessa figura, Dante está consultando livros, como se quisesse denunciar que, já naquela época, toda poesia valorizava a intertextualidade. E Dom Gigio continuou com sua descrição pedindo minha atenção para a tez morena do vate, para, a seguir, contar-me uma história, a qual, segundo ele, vinha sendo transmitida pelo corpo diaconal da casa há cerca de quinhentos anos.

Antes de iniciar seu relato, ele ainda ressalvou já ter ouvido dizer que essa história fora contada inicialmente por Boccaccio, amigo pessoal do poeta, mas a que iria descrever agora havia sido ouvida diretamente da boca de Luca Signorelli que, assim, justificava sua pintura. O episódio aconteceu em Verona, quando aí se exilou, por ter sido condenado à morte, injustamente, em Florença; numa época em que já era bem famoso. Pois certo dia, enquanto dava uma caminhada com alguns amigos, tendo passado por uma porta onde estavam algumas moças, ouviu uma delas sussurrar para as outras: — Olhem só quem vai ali! É aquele que viaja ao Inferno quando quer e de lá traz notícias! Ao que outra das amigas – também sotto vocce – teria respondido: — Acho que é verdade! Vejam como a barba dele é crespa e a pele morena. Deve ser por causa do calor e da fumaça lá de baixo.  Dante, ao ouvir, teria sorrido de contentamento por perceber que sua ficção era tomada como descrição da realidade. Contudo, no retrato, o bardo está barbeado e os crespos não aparecem. A tez morena sim. Signorelli chegou a pintar os cabelos crespos, mas depois resolveu que deveria retratá-lo como aos intelectuais florentinos e cobriu-lhe a cabeça com um lenço, acrescentando os louros, que Dante tanto desejava e que nunca recebeu.

Quanto a mim, se já estava encantado com as pinturas, depois dos casuais e despretensiosos comentários daquele simpático subdiácono, fiquei deveras embevecido e fiz questão de agradecer-lhe condignamente. Mas ele me interrompeu imediatamente, dizendo que não me preocupasse, pois era ele a agradecer por meu interesse. Era praxe daquele diaconal contar essa história aos turistas quando neles percebia um verdadeiro interesse. Não o fazia com a frequência almejada, mas de quando em quando conseguia. Anos antes, aliás, seu antecessor, já falecido, bem velhinho, tentara contar a história a um visitante ilustre, Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, isso ainda lá no finalzinho do século XIX – disse ainda, à guisa de despedida – mas quando ele terminou a avaliação de seu interesse e decidiu-se a abordá-lo, o ilustre visitante já se ia.

 


FORTUNA CRÍTICA

Armindo Trevisan 

Poeta; Professor de História da Arte na UFRGS

(07.01.2025):

Não sabia que Freud tinha estado nessa pitoresca cidadezinha, que tem alguns dos tesouros artísticos mais preciosos da Itália. São Tomás de Aquino, por convite de um Papa, passou alguns anos em Orvieto.

Tua crônica é deliciosa, pela tua descrição de eclesiásticos italianos típicos, que ainda hoje, apesar da Globalização, são encontráveis na Itália. Gostei especialmente por tuas lembranças, sensíveis e exatas, do que viste. Nas minhas aulas eu valorizava, de modo especial, Signorelli, por ele ter, de certo modo, antecipado a arte de Miguel Ângelo, os dois influenciados por Masaccio, o primeiro a dar um passo decisivo depois de Giotto, rumo a um maior realismo não só anatômico, mas gestual.


Virgínia Leal 

Professora na Universidade Federal do Recife

(08.01.2025):

Ah, se quando visitei esta Catedral tivesse me aparecido um subdiácono como este... Mas ele não seria suficiente para compreender a abissalidade do conjunto de aprendizagaens que inclui as menções de Freud - e as tuas, tudo muito bem tricotado, Luiz-Olyntho!!!! Bravo!!!


Dulcinea Maria Fonseca dos Santos

Crítica Literária

(08.01.2025):

 Amante dedicado à “alta fantasia” dantesca,  apresenta-nos esse curioso achado em suas   incursões no universo das Arates Sacras! 

  Grazie!!!

Ione Russo 

Psicóloga e Psicanalista

(08.01.2025}:

Obrigada por multiplicar tua cultura e enriquecer-nos com tuas experiências ao redor do mundo.

Ester Mirian Menda  

Psicanalista

(08.01.2025):

Apreciar uma obra e trazer todo um contexto, uma história que puxa a outra, mostra o valor de quem está diante dela. Diferente de turistas em geral, que passam e exteriorizam apenas um “que lindo!” – Belo relato!

Adilson Oliveira

Diretor do Museu de Arte de Com Pedrito

(0801.2025):

Lindo comentário.

Eugenia Gorini Esmeraldo

Mestre em História; Chefe da coordenadoria de intercâmbio do MASP

(09.01.2025):

Adorei esse teu relato. A Catedral de Orvieto é deslumbranate!



































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