O CORDEIRO E O PIRILAMPO
(The lamb and the lightning bug)
por
Luiz-Olyntho Telles da Silva
The glow-worm shows
the matin to be near.
SHAKESPEARE,
Hamlet (Ato I, Cena V)
Estou muito contente
de estar aqui com vocês. Não fossem os outros motivos, sair
do silêncio já seria suficiente.
Minha exposição
estará dividida em duas partes: Na primeira darei notícias
da formação analítica na parte de meu país que
conheço e, na segunda, destacarei um aspecto da formação
analítica que considero importante, exatamente o aspecto do um.
Antes porém
quero agradecer-lhes pela possibilidade de estar aqui com vocês nesta
mesa redonda. O papel do psicanalista inclui este dar contas do saber que
a prática lhe confere ante a comunidade, mas como não é
sempre que as oportunidades adequadas são criadas, quero agradecer
e parabenizar a Aprés-Coup por esta feliz, oportuna e corajosa iniciativa;
de modo especial quero agradecer a Paola Mieli por todo o seu trabalho no
sentido de trazer Lacan aos Estados Unidos da América.
Para ser analista
é preciso ser corajoso. Durante toda a minha vida tenho escutado falar
do edulcoramento sofrido pela psicanálise, devido à sua passagem
pelos EEUU. A adaptação ao american way of life
foi devastadora. E ver alguém enfrentar todas as dificuldades de um
trabalho de reconstrução merece nossa saudação
e nossa companhia.
Em meu país,
de modo geral, somos herdeiros justamente desta psicanálise açucarada
pela psiquiatria que nunca conseguiu tomá-la como um outro campo. Para
a psiquiatria, a psicanálise foi e continua sendo pura e simplesmente
um instrumento a mais, alternativo entre os tantos recursos à sua disposição.
E isto acarreta inúmeros prejuízos a todos, mesmo à
psiquiatria, de modo que é nosso dever tornar o mais claro possível
suas diferenças.
O engano vai
desde o conceito de inconsciente, o qual é visto como uma substância,
até o conceito mesmo de formação analítica. Não
é nada raro que um psicanalista, principalmente entre os ligados a
IPA, exerça pela manhã como psiquiatra em um hospital e pela
tarde como psicanalista em seu consultório. – Lembram quando Freud
diz que a psicanálise não é como um par de óculos
que se põe para ler e se tira para passear? E em seu cartão
de visita ler-se-á, coerentemente, “Médico-Psicanalista”. De
uns poucos anos para cá estes analistas ligados à IPA tem aceito
para formação também pessoas provindas da área
da psicologia, e estes depois de um tempo se dizem “Psicólogo-Psicanalista”,
epíteto adotado também por alguns analistas lacanianos, os quais
começaram sua formação com os psiquiatras, como se a
psicanálise fosse uma especialização, ora da medicina,
ora da psicologia. Não preciso lhes dizer que o privilégio é
ao mercado.
Privilégio
este que leva, a meu entender, a um outro grande engano chamado genericamente
de “Clínicas de atendimento à comunidades carentes”.
E é em torno a este ponto que quero situar minha crítica.
Claro está
que a crítica não busca determinar o quanto cada um deve cobrar
por seu trabalho, se é preciso ir trabalhar em vilas operárias
ou mandar o chofer com o Rols para buscar os pacientes. Não quero nem
mesmo entrar no conhecido conceito de carência. O que quero denunciar
é a utilização destas clínicas, pelas instituições
psicanalíticas, dentro de um conceito muito específico, qual
seja o de que elas servem para a formação dos analistas.
E este engano
não provém apenas dos analistas ligados à IPA. Analistas
ditos lacanianos, conforme um texto que recebi há poucos dias de uma
instituição situada em meu país cerca de 2º abaixo
do Trópico de Capricórnio, também propõem a mesma
prática. É minha hipótese que o engano aí presente
é conseqüência do enquadramento da psicanálise entre
as especializações médicas. Todos conhecemos a tradição
médica da aprendizagem no corpo do outro. Mas querer transpor este
método à aprendizagem da psicanálise é um terrível
engano. Qual? – O de confundir o outro, minúsculo, do próximo,
da imagem especular, do real (que não aparece na imagem), com o Outro,
maiúsculo, da mãe [desejante], do tesouro do significante, do
simbólico.
Em medicina,
pelo menos depois do advento do estudo da anatomia, o ensino se dá
sobre o corpo morto do outro, sobre o cadáver do outro. Mas
na psicanálise, quem deve ocupar o lugar do morto é o analista,
não o analisante. E podemos perguntar: não será por
isto que muitos analistas confundem o lugar do morto com o do cadáver?
Acreditando, por exemplo, que o analista não deve falar nunca? – A
especificidade da aprendizagem da psicanálise é que esta se
aprende sobre o próprio corpo, enquanto corpo do Outro (maiúsculo).
Se mesmo estas
obviedades não são consideradas, os analistas assim produzidos,
serão sempre da ordem da inocência, lambs, infans
cujo balido o inconsciente nunca ouvirá.
Quando Lacan
propõe seus quatro conceitos, dizendo que eles formam o pudendo da
psicanálise, o que eu entendo é que estes quatro conceitos
estão enodados entre si, formando uma estrutura. Quer dizer, tire-se
um dos termos e já nenhum deles será o mesmo de antes. Assim,
se tirarmos o conceito de ‘transferência’, por exemplo, o ‘inconsciente’
já não será o mesmo! Mas qual psicanalista deixará
de considerar a transferência? – poderiam perguntar-me. Freud
mesmo disse que seria fundamental considerá-lo para estar na psicanálise!
O.K.! Agora, quando se propõe uma destas ‘clínicas’, com quem
é a transferência? Com a ‘clínica’, ou com o analista?
A distinção entre transferência imaginária e transferência
simbólica estará sendo tomada em consideração?
Na medida em que o analista se esforça para ‘levar’ a psicanálise
às ‘comunidades carentes’, não estará confundindo o
conceito de ‘pulsão’? Melhor dar-lhes o bolo, já que não
podem ter pão ?
O que eu quero
dizer-lhes, enfim, é que eu reconheço que é mesmo muito
difícil incorporar estes conceitos. É possível que possamos
atribuir isto à passagem da psicanálise pelos EEUU , mas não
podemos passar o resto de nossa vida projetando esta desculpa. Precisamos
encarar esta dificuldade como sendo de nossa responsabilidade e aceitar, de
uma vez por todas, que nossa crítica não visa matar o
outro, e vice-versa.
Para dar-lhes
um exemplo do tipo de engano que ocorre em meu país, ocorreu-me mostrar-lhes
algo bem mais próximo: No primeiro artigo publicado no ano passado,
aqui em New York, pela revista Clinical Studies, um professor,
embora muito interessado na obra de Lacan, parece já na primeira linha
de seu artigo confundir psicanálise com psicoterapia; e quando começa
a descrever a parte clínica de seu artigo, a distinção
entre ‘sessão [psicanalítica]’ e ‘entrevista’ parece não
lhe importar.
Lembram quando
Freud diz que se quiserem incluir a psicanálise entre as psicoterapias
– preocupado em angariar simpatia para sua nova teoria – ele diz que está
bem, mas pede para não esquecer que ela é primum inter
pares? Lacan, mais enfático, diz que a psicoterapia seria
ótima se não levasse ao pior. Por quê? Porque, fundamentalmente,
o psicoterapeuta está no lugar daquele que sabe o que é
melhor para ‘seu’ paciente. Enquanto este psicoterapeuta, por desconhecimento
(quero crer), encarna a suposição de saber de ‘seu’ paciente,
o psicanalista que sabe desta suposição, conceitua-a como SSS
para desde aí cair. Como conciliar um saber anterior, a priori,
com o sem sentido, com o a posteriori, com o aprés-coup
próprio da psicanálise? Esta conciliação não
aproxima o sujeito do campo da religião? E a indiferença entre
‘entrevista’ e ‘sessão’, também tão comum na nossa área,
não é indicadora da falta de reconhecimento das características
próprias da transferência? Caso em que o analista se torna cúmplice
– por identificação – com a ‘repetição’ de “seu”
paciente?!
A análise
pessoal do analista se faz necessária, entre outras coisas para que
este possa diferenciar o que é seu daquilo que é do analisante,
por mais parecido que possa ser. E acredito que o reconhecimento destas diferenças
é fundamental para o reconhecimento das diferenças conceptuais.
Todos sabemos
que a psicanálise se transmite pelo divã. Ora, quando Lacan
diz que no final da análise temos, no lugar da produção,
um analista, ele não está dizendo outra coisa. Se há
uma diferença entre Freud e Lacan, neste momento, eu diria que é
a da formalização: Lacan matematiza a produção
de um analista, mas ambos estão de acordo que a formação
de um tem na sua base o ato de outro.
No Seminário
XVII, dos anos 69-70, ele escreve o matema do discurso do analista
a
$
______ ______
S2
S1
dizendo que o analista, reduzido
a um lugar de semblante (a), tendo em sua base um saber que não se
sabe (S2), implica (
) uma impossibilidade sobre o barramento do sujeito ($) produzindo um significante
amo (S1).
Pois é
deste ‘1’ que especifica o produto do discurso do analista que gostaria de
falar-lhes.
Quando Lacan
equipara a produção de um analista com a do S índice
1, com a do significante unário, ele está propondo a paranóia
como ponto de partida . Ele faz isto já em sua tese de doutorado
quando diz que a personalidade – cujo conceito destaca a unidade – é
a paranóia. No Seminário 2, ele especifica que se trata
de uma ‘paranóia pós-analítica’, a qual não caracteriza
o final mas sim um momento inicial da análise. Na Proposição
de 9 de outubro de 1967, Lacan diz que “A passagem de psicanalisante
a psicanalista tem uma porta na qual o resto que faz sua divisão é
o gonzo, porque esta divisão não é outra que aquela
do sujeito, cujo resto é a causa”. E continua: “Nesta virada onde
o sujeito vê soçobrar a segurança que emprestava deste
fantasma onde se constitui para cada um sua janela sobre o real, o que se
apercebe, é que a tomada do desejo não é senão
a de um desser”. Sem esta passagem o sujeito pode ficar fixado neste estado
paranóico que tem na megalomania sua principal característica,
como bem lembra Harari em Discorrer a psicanálise .
Dizer que o
‘1’ de ‘S1’ é da ordem da paranóia, implica que estamos olhando
pelo lado do simbólico. E quando digo ‘olhando’, estou usando o verbo
grego
, raiz etimológica de ‘teoria’.
Para falar deste
‘1’, queria recorrer agora também a um outro suporte erístico.
No Seminário
11, no capítulo dedicado a ‘presença do analista’, instigado
a falar sobre a essência, Lacan menciona um movimento do sujeito, da
ordem de uma pulsação temporal que só se abre para tornar
a se fechar, “pois o sujeito não é jamais senão pontual
e evanescente” . Lacan está tratando de uma questão ontológica
do inconsciente, e sugere que este assunto poderia prender-se à teoria
de Plotino, ao Um de Plotino eu suponho.
A principal
contribuição de Plotino foi uma recapitulação
da história da filosofia grega, feita de forma tríplice, com
a especulação sobre o ‘Um”; com a meditação sobre
a participação e sobre as “naturezas inteligíveis” e
sua relação com as “naturezas sensíveis”; e ainda com
o exame da idéia de “emanação”. Nas suas Novenas
se pode ver o tratamento que dá a Unidade: antes de mais nada um princípio
de perfeição e de realidade superior, pois o Um não deve
ser concebido exclusivamente como uma expressão numérica, mas
sim como uma essência suprema existente. Diferente do Um de Platão,
concebido como o ápice de uma hierarquia, mas sempre um dado de medida,
o Um de Plotino é ausência de limite e infinito.
A supremacia
do significante se deve a um princípio imperativo e se o Um de Plotino
é princípio, não é a realidade única,
justamente por ser fundamento da diversidade. Enquanto o Um de Plotino é
condição do dois, o S1 de Lacan representa o $ para S2. Em Lacan só se sabe do 1 quando aparece no 2, quer dizer:
o 2 é condição do 1.
Por um lado,
o Um vive em absoluta e completa tensão, recolhido sobre si mesmo
e recolhendo com ele a realidade restante, e por outro, a distensão
desta primitiva e originária tensão produz uma emanação.
Temos então basicamente dois movimentos: a processão
promotora da emanação e o subseqüente recolhimento, chamado
conversão. Abertura e fechamento do inconsciente?
1º mov.
2º mov.
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Processão
Emanação
Conversão
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[prodoV]
[perilamyiV]
[epistrojh]
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(promotora da)
(recolhimento)
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O que me pareceu
destacável nesta alusão de Lacan a Plotino é que este
movimento do Um se parece em muito com a atividade do analista, a qual para
ter eficácia, precisa ter em conta as características do inconsciente.
Para que haja um só sujeito na análise, o analista precisa
levar em conta estas características, pois é através
destes movimentos que se dá a relação entre o Um e as
realidades dele emanadas; é como uma irradiação, uma
perilamyiV (Lacan lembra as “lucioles”,
lembra, como soa melhor no inglês, os ‘lightning bugs’):
o superior irradia sobre o inferior sem perder nada de sua própria
substância. E não é assim que Freud se refere ao inconsciente
quando da formação de substitutos? Que sua carga, que a besetzung
não se perde?
Quer dizer,
a interpretação psicanalítica, para ser eficaz deve,
então, como o lampejo do pirilampo, ao estílo de uma epístrofe,
abrir sempre para novas possibilidades de leitura.
O interessante
do conceito de emanação, esta perilamyiV,
é que envolve um modo de produção distinto da criação:
o emanado tende a parecer-se com o ser do qual emana, como seu modelo antes
que com seu criador.
É chegado o momento
de concluir, o momento da epistrojh que
caracteriza o fechamento do tempo de compreender reduzido ao instante de
ver, ao instante da qewria. E esta epistrojh leva também a marca do Um, pois
o tempo para Plotino deve ter uma realidade própria com respeito ao
movimento, não pode ser só número ou medida do movimento,
é impulso, pulsação, abertura e fechamento, diferente
da importância que tem para o cristianismo onde o tempo é essencial,
não como impulso mas como drama, o drama da eternidade com todas suas
peripécias.
E concluo com
uma epístrofe do The Raven, de Poe, que se tornou clássica.
Clássica, quem sabe, justamente por esta abertura de uma possibilidade
de leitura sempre renovada do infinito:
Never more.
Contudo voltamos a insistir.
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