P A R A L E R
FINNICIUS REVÉM
ou
A CÓPULA NÃO É TUDO
por
Luiz-Olyntho Telles da Silva
PRÓLOGO
A
leitura de Finnegans Wake é difícil. Esta é uma constatação
de todo leitor.
Uma das
dificuldades que o texto nos coloca a cada momento é a identificação
dos personagens e também, diria, do narrador.
Os personagens
se sucedem, mergulhando uns nos outros, mostrando-se ora travestidos ora
desnudados, mas sempre mal vestidos. Como na vida, não há
alfaiate que vista o homem de uma forma definitiva.
Uma luz
se abriu para mim quando Donaldo Schüler, em seu recente livro "Origens
do discurso democrático"(1) nos apresenta uma tradução
particular de um fragmento da primeira frase da "Odisséia" de Homero.
Enquanto Carlos Alberto Nunes, por exemplo, escreve "Musa, reconta-me os
feitos do herói astucioso que muito peregrinou..."(2), e na versão
da UFRGS apareça "Ó Musa, fala-me do solerte varão,
que, depois de ter destruído a cidade sagrada de Tróia, andou
errante por..."(3),
o Prof. Donaldo propõe simplesmente que a exortação
de Atenas a Telêmaco comece assim: "O homem, canta-me, ó Musa,
o polýtropos".
O "herói
astucioso" de Nunes, o "solerte varão" da UFRGS, são para
Donaldo apenas "O homem". Mas este homem, nós já sabemos,
se trata de Ulisses. O mesmo Ulisses que na “Ilíada” era um entre
outros passa, aqui na Odisséia, a ser todos em um. Em vez de seguir
as traduções tradicionais do adjetivo polu-tropoV,
on (errante, muito
variado, flexível, destro, industrioso, astuto), ele o mantém
em sua forma translítera, permitindo-nos ver aí o radical
anQrwpoV (homem,
mulher) precedido pelo radical poly (muitos): o homem é muitos!
Se isto
começa a se evidenciar em Homero, em Joyce é levado a sua
quintessência através da reencarnação de Ulisses
em Leopold Bloom e, depois, em Finnegans Wake, nas diversas personagens
e circunstâncias que aparecem nas mais diferentes formas sob as siglas
de HCE e ALP, v.g..
O texto
a seguir foi escrito para a apresentação do 4º volume
da Versão Brasileira realizada por Donaldo Schüler através
de Ateliê Editorial, cujo projeto inicial pretendia dedicar um volume
para cada capítulo. Dificuldades finnanceiras, contudo, lamentavelmente
o impediram mantendo o projeto original apenas no 1º Volume. O 2º
Vol. publicou outros três capítulos do Primeiro Livro e o
3º Vol. completou-o com os capítulos 5, 6, 7 e 8. Todos os
volumes são ricamente encadernados contendo o último ilustrações
de Hélio Vinci, enquanto as abas são de minha autoria. No
próximo ano deverá sair o 5º Volume com todos os capítulos
finais. Aguardemos e, enquanto esperamos, nos deliciemos com o que já
temos disponível.
Porto Alegre,
14 de novembro de 2002.
Luiz-Olyntho
Telles da Silva
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“Em todas as épocas da história aqueles que tiveram
algo a dizer mas não puderam dizê-lo sem perigo
puseram com presteza uma touca de bobo.”
S. FREUD, A interpretação de sonhos. Cap. VI (G).
“As palavras, visto serem os pontos nodais de numerosas
idéias, podem ser consideradas como predestinadas à ambigüidade”.
S. FREUD, A interpretação de sonhos. Cap. VI (D).
Quem sou? De onde vim? Para onde vou? As questões de
sempre estão presentes em FW como armação e estrutura
do próprio texto marcado pela incerteza e pelo engano na busca de
respostas. E o texto não é sem o leitor que fará sempre
seu próprio caminho. Tornos e retornos levam-nos a reler Joyce.
Este 4º volume, dedicado aos filhos, precisa - em toda sua polifonia
- [d]os volumes dedicados aos pais. Um não é sem o Outro.
O primeiro capítulo do primeiro livro abre com riverrun, vertido
por Donaldo Schüler para rolarrioanna. Maravilhoso! Mas não
podemos esquecer que há um outro começo (e quando não
há?): me refiro à Introdução onde Donaldo Virgílio,
por flores, floras, faunos, faunas, vidas e vias nos apresenta o romance-rio.
Aí é o traduautor que rolarriorrema.
Se navegar é preciso, como nos ensina Plauto - inspirado, quem sabe,
no velho Ulisses - rememoremos, quer dizer, rememos com os remos da memória!
O argumento não pode ser mais prosaico: um velório com seu
defunto corpse. Tim Finnegan, embalado pelo nacionalismo irlandês
- que recorda o mítico gigante Finn MacCool - e pelo uísque,
rola escada a baixo, tal qual Adão, Lúcifer, a maçã
de Newton ou a bolsa de Wall Street, morre e é velado por seus amigos,
conhecidos, parentes, tractores e detractores.
Nossos remos são agora os comentários, os remas do Donaldo.
Oh! Remos. Um amigo inventa de deitar um gole do uísque mágico
nos lábios de Finnegan, ressuscitando-o. E agora é preciso
persuadi-lo a voltar ao féretro para que outros possam viver.
Os personagens se sucedem submergindo uns nos outros, formando cadeias
associativas. O critério para os enlaces é o mesmo dos sonhos:
restos de grande valor psíquico!
Para adentrar a questão onírica, Donaldo utiliza dois sonhos
de Freud, um contado a ele por uma moça às vésperas
do casamento e outro dele próprio. Os que se interessam por mais
detalhes poderão encontrá-los em A interpretação
de sonhos, ambos no capítulo VI, dedicado ao "Trabalho do sonho",
Die Traumarbeit. O registro do segundo, aliás, é muito
interessante: no índice de sonhos da ed.brasileira consta "'Myops',
meu filho", como tradução de Mein Shon, der Myop.
Um ato falho parece ter acrescentado um 's' a mais, indicando, quiçá,
que todos devemos dar alguma atenção à nossa própria
miopia.
Do primeiro sonho, Donaldo colhe, dentre as flores, a violeta central.
Note-se que estamos no centro do capítulo VI, na parte destinada
a Consideração à figurabilidade, Die Rücksicht
auf Darstellbarkeit. A alusão é aos pensamentos (pansy
[I] e Pensée [F]) do sonho, aos Traumgedanken. Pela
violeta passarão também suas primas, as violas tricolores
conhecidas por nós como amores-perfeitos e pelos alemães
como Die Stiefmütterchen, as queridas mãezinhas, e passará
também a violência dos violadores d'amores. Estamos falando
de Tristão que viola a Isolda prometida ao tio, o rei Marc. Cada
figura, cada personagem, cada cena condensa uma série de outras
e por sua vez remete a outras tantas. As metáforas e as metonímias
são constantes. Como diz Donaldo, os personagens "submergem" uns
nos outros e por isto mesmo é difícil identificá-los.
Como entender a consubstanciação do pai e do filho?
Por mais forte que uma imagem seja, ela não diz tudo. De certo modo
é como se o esforço de Joyce consistisse em nos dizer que
não há cópula que por si só seja capaz de dar
conta, de constituir o sujeito como um todo. Nossa tendência é
a de crer na inteireza do objeto e a ele nos agarramos com a esperança
de que o sujeito aí representado possa ser todo, inteiro. Mas, como
já dizia Napoleão, a anatomia é o destino; não
podemos nos reconhecer mais do que por tomos. E quando pensamos que enfim
vamos apanhar o sujeito, ele se afanisa. Finnegan precisa morrer!
A palavra de que nos utilizamos é sempre uma confluência de
semas marcados historicamente pelas vivências de cada um, levando-nos,
em cada enunciação a dizer sempre mais e outra coisa, diferente
do pretendido. Como diz Freud, as palavras são um equivoco predestinado.
Consegui me fazer entender? Pois mergulhemos outra vez! Rolarrioanna.
Porto Alegre, 30 de outubro de 2002.
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