Luiz-Olyntho Telles da Silva
Psicanalista |
QUEM CONTA UM CONTO
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Luiz-Olyntho Telles da Silva
Montevidéu, 10 de maio de 2008 Queridos colegas e amigos Estou muito contente de estar aqui com vocês, em sua casa, a Escola Freudiana de Montevidéu, respondendo a este convite tão gentil. Esse momento se constitui para mim em um verdadeiro regozijo, tal a alegria em que me encontro. A oportunidade de ter assistido a discussão de um caso clínico, de ter participado na discussão de uma apresentação de pacientes, me oportuniza viver uma vez mais a intimidade do trabalho de vocês, uma intimidade da qual tenho tido o privilégio de usufruir, das mais diferentes maneiras, ao longo dos últimos 23 anos. Na abertura da última Lacano, Landeira falou em 25 anos de fundação da Escola Freudiana de Montevidéu. Assim que, faz muito que lhes acompanho! Quantas vezes nos visitaram nas Jornadas que promovemos em nossa casa e quantas viemos nós aqui! Inclusive uma vez fomos juntos a Buenos Aires fazer uma Jornada, aí, com outros colegas. No meu entender, isso quer dizer que há entre nós uma forte transferência de trabalho. Uma transferência de trabalho que com o passar dos anos foi se transformando em amizade, uma amizade particular com muitos de vocês. Nós, e quando uso esse pronome estou me refiro a todos os que estamos na Psicanálise, nós escolhemos, – na medida em que cada um pode escolher! – um campo muito difícil para trabalhar. Mas nós escolhemos também um campo que, além de rico, é muito generoso. E a generosidade maior, quero crer, consiste em algo que, se aprendemos logo nos primeiros dias de aprendiz, refiro-me ao fato de a formação analítica ser contínua, essa mesma continuidade nos permite rever muitos conceitos, penetrar por entre suas letras, por seus diastemas, mesmo porque cada novo conhecimento faz girar o quadro já existente, recompondo-o, e, com uma melhor compreensão dos mesmos, nos possibilita melhor enfrentar os impasses oferecidos pela vida. Para tal, a presença forte de vocês da Escola Freudiana de Montevidéu, em meu horizonte, tem sido decisiva. É pela história desses laços que suponho estar aqui a conversar com vocês. Dado que me foi permitido escolher o tema para falar, optei pela ética da Psicanálise. Imaginem! Falar de ética para psicanalistas! Um atrevimento comparável ao de uma solteirona desastrada que tentasse dar conselhos na arte da amamentação às fecundas matronas de Israel, como bem poderia dizer Mark Twain. Mas enfim, desde o título que lhes sugeri - onde suponho já tenham reconhecido uma máxima popular para justificar os boatos - queria propor uma discussão sobre os efeitos da visibilidade e da invisibilidade. Isso deu ensejo à minha primeira epígrafe: As
psiques aspiram aromas do hades.
(Heráclito, B98, Trad. D.Schüler) Eu sei, e sei que vocês sabem, que os temas discutidos não terminam nem se acabam com a discussão. Por isso mesmo, vou tomar como segunda epígrafe para esta charla uma frase de Lacan, logo do início do capítulo IX do Seminário da Ética, correspondente a aula de 27 de janeiro de 1960. Soa como uma espécie de auto-recriminação, mas na verdade se parece mais a uma proposta ética. Diz o Mestre: Noutro
dia, após tê-los deixado,
Esta frase, no meu modo
de entender, condensa muito do espírito da Lacano: depois que cada um apresenta
seu trabalho, em vez de correr para o abraço, festejando seu extraordinário
desempenho, ocupa-se com a coordenação do próximo trabalho com toda a necessária
atenção para encaminhar a discussão seguinte; em outras palavras, como diz
a frase de Lacan, volta a ocupar o lugar do que não sabe.vítima desses escrúpulos que sempre me fazem lastimar não ter esgotado a bibliografia concernente aos assuntos que tratamos, reportei-me nessa mesma tarde, [aos artigos tais e tais].1 É assim que procedemos. Ocupados com a verdade, sabemos que ela não costuma apresentar-se diretamente, e, quando o faz, pode ser para enganar. Todos nós lembramos, nesse propósito, deste witz maravilhoso que consiste no encontro de dois judeus na estação de Galícia: Onde tu vais? – pergunta o primeiro. A Cracóvia - foi a resposta. Mas então tu és um mentiroso! – não se conteve o primeiro. Tu me dizes que vais a Cracóvia para me fazer crer que tu vais a Lemberg, mas eu sei, de fato, que tu vais a Cracóvia. Então, por que tu me mentes? Lacan diz que estamos em presença de um sujeito na medida em que o que ele diz pode ser suposto ter sido dito para nos ludibriar, com toda a dialética que isto comporta, mesmo e aí compreendido que ele diga a verdade para que nós acreditemos no contrário.2 Mas Lacan, ao dizer isso, está retomando os estudos de Freud, no Projeto de 1895, a propósito da Proton Pseudos, a primeira mentira histérica. Frreud a ilustra aí com o exemplo de Emma, quando ela se achava dominada pela compulsão de não poder entrar nas lojas sozinha. Sua explicação para essa dificuldade foi a lembrança de um episódio de seus doze anos: ela entrou numa loja para comprar algo, viu dois vendedores (de um dos quais ainda se lembra) rindo juntos, e saiu correndo, tomada de uma espécie de afeto de susto. Em relação a isso, terminou recordando que os dois estavam rindo das roupas dela e que um deles a havia agradado sexualmente. Porém, como nada disso fazia sentido para entender sua compulsão, Emma se lembrou de outra cena, anterior, afirmando, contudo, que na ocasião da cena dos doze anos ela não se lembrara dela: aos oito anos, ela fora duas vezes a uma mesma confeitaria e, na primeira, o proprietário tocou em seus genitais por cima da roupa; mesmo assim voltou uma segunda vez, e depois nunca mais foi. Agora ela se recrimina por ter voltado, era como se ela quisesse provocar os acontecimentos. Para Freud, as roupas representavam a representação, a vorstellung mentirosa. E ele fez até um diagrama da história:3 As bolinhas escuras do desenho, correspondentes para Freud às percepções recordadas, podem ser vistas também como uma representação dos significantes do discurso. Por eles se pode chegar do lembrado ao esquecido e mesmo ao reprimido. É por meio disso, da transformação mentirosa, que temos a indicação do que, no sujeito, marca para sempre sua relação com das Ding como mau, uma relação que ele não pode formular, no entanto, como sendo da ordem do mau de outra maneira que não pelo sintoma.4 Daí podermos dizer que o sintoma é o retorno, por via de substituição significante, do que se encontra na ponta da pulsão como seu alvo. Em outras palavras: a partir do que se vê - mesmo sendo um engano -, pode-se chegar ao que não se vê. Do visível temos de chegar ao invisível, pois, como disse Anaxágoras (500-428aC), O visível é só uma parte do invisível. Heráclito, que foi seu contemporâneo (540-470aC), interpretou o tema de modo alegórico, conforme ao fragmento B98: As psiques (almas) farejam no Hades (invisível). E não se pode deixar de notar o seguinte: se aquilo que se vê é o engano, enquanto que aquilo que não se vê está mais próximo do que não engana, no lugar do que não engana temos a morte, o desengano por excelência. A morte, porém, sendo sempre assustadora, tende a nos impedir de aí procurar. Afinal, quantos retornam do Hades? Exemplifiquemos examinando uma frase frequente: a ética não é a moral. Será assim mesmo? Ou talvez se trate de uma negação (verneinung)? Comecemos examinando sua etimologia: ética e moral derivam ambas de ethos. Cícero, quando trata dos costumes, propõe que se chame a ética de moral, opondo-a a tudo que é físico. A moral constituirá, para ele, tudo o que não é puramente físico no homem, a história, a política, a arte, e também tudo o que corresponde às produções do espírito subjetivo e mesmo o próprio espírito subjetivo. Quando opõe a moral ao intelectual, reserva para a moral o que é da ordem do sentimento, enquanto atribui ao intelectual a inteligência. Hegel, por sua vez, distingue duas moralidades, uma subjetiva e outra objetiva. À primeira, a Moralität, ele dirá ser a moralidade propriamente dita, à qual está subscrito o cumprimento do dever por ato de vontade. À segunda, a Sittlichkeit, ele dirá corresponder à eticidade, compreendida como obediência à lei moral enquanto fixada pelas normas, leis e costumes da sociedade. Sigmund Freud, em Moisés e o monoteísmo, toma logo uma outra vertente, essa que não se deixa enganar pelo comportamento aparente, e estoura: Ethik ist aber Triebeinschränkung (A ética é uma limitação da pulsão).5 Lacan chama a atenção para dois ethos: um que se escreve com épsilon [E] e espírito brando, ἔθος, relacionado ao hábito e aos usos e costumes, e um outro ἧθος escrito com eta [H] e espírito fechado, relacionado ao caráter, a casa, com o sentido de proteção, o que inclui sua morada mas também o curral e a estrebaria, e mesmo a sua pele. É com esse segundo ἧθος que a ética da Psicanálise tem a ver, pois, em última instância, é a sua própria pele que o sujeito [do inconsciente] arriscará. E o que me autoriza a dizer isso, entre outras coisas, é uma frase do próprio Lacan, no seu seminário do dia 29 de janeiro de 1964: O estatuto do inconsciente, tão frágil no plano ôntico, é ético.6 A fragilidade desse plano ôntico, sua precariedade, tem a ver com esta falha representada aqui pelo engano, pela mentira. É o que chamamos de fenda, essa evanescente arte efêmera representada, na lógica, por uma barra. Freud, como uma cavaleiro que marcha na noite, sabe que o que quer que seja, é preciso chegar lá. Seu modelo está baseado no sonho de sua grande paixão, Moisés. O sonho de Moisés era levar seu povo para um lugar onde (ele ainda não sabia) só os outros entram! O país para onde Freud leva seu povo é o inconsciente, o que só é possível com a ajuda do outro. Para chegar a essa interpretação foi fundamental para Freud a leitura de Goethe quando interpreta o ideal da humanidade: ganhar terras ao mar! Goethe percebera isso observando a construção dos Zuidersee, os diques que permitiram aos países baixos aumentar com segurança seus territórios. Foi o que permitiu a Freud traduzir para si esse ideal como Wo Es war, soll ich werden (Onde isso era, devo eu vir à luz). Esse soll, diz Lacan, é um dever moral. No meu entender, isso equivale a dizer que a ética não é sem a moral! Reconhecer a fragilidade ôntica do estatuto do inconsciente equivale a dizer de algo que não se sabe dizer, equivale a falar de das Ding, a falar do desejo, o qual requer uma interpretação que passe necessariamente pelo Outro. A alternativa para isso será apenas uma fala vazia. A ética abre para duas possibilidades de resposta: ou à moral (do outro minúsculo) ou ao desejo (do Outro maiúsculo). Entre as duas encontra-se uma abertura para a intervenção do analista. É o que sugere a pergunta por sua neutralidade. Para considerar a participação do analista na interpretação, proponho voltarmos à paixão de Freud, e ao Moisés. Voltemos a um momento importante de sua travessia em direção a terra prometida: O encontro com Deus através deste nume que é a Sarça Ardente. Dos 40 anos de travessia, 40 dias e 40 noites passaram-se com a Sarça Ardente. Há de ter sido um longo diálogo, embora o que reste seja apenas fragmentos. Um deles, em hebraico, diz ter sido assim uma das falas de Deus: Eyé acher eyé. Em geral se traduz Eu sou aquele que sou, ou Eu sou aquele que é, traduções que sempre me pareceram pejadas de um narcismo inseguro e jactancioso, se impróprio a um homem, muito mais a um Deus. Mas como no seminário de 4 de dezembro de 1968, Lacan, depois de ter retomado o tema por várias vezes, deu-se conta de que tanto o verbo ser como o verbo seguir dizem, na primeira pessoa do singular, no tempo presente, je suis, isso nos possibilita traduzir a frase como Eu sou aquele que eu sigo!7 Uma frase a ressaltar o lugar do Outro. Um velho ditado reza assim: Diga-me com quem andas e dir-te-ei quem és! Atenhamo-nos, porém, à escultura de Miguel Ângelo analisada por Freud. Comecemos por aqui. Quando Paulo Medeiros analisa esse texto e essa escultura, ele chama nossa atenção para algo deixado para trás nessa análise: os chifres de Moisés. Enquanto a observação de Freud se reduz a discorrer Über diesen panköpfigen Moses, sobre essa cabeça de Pan de Moisés, Medeiros busca esclarecer uma certa confusão entre dois termos semitas: qâran (irradiar, resplandecer) e queren (chifre). Na tradução da versão hebraica, ao descrever a descida do Monte Sinai, aparece ora que o rosto de Moisés lançava raios (qâran), ora que de sua cabeça cresciam chifres (queren), e os chifres podem ser entendidos como restos do bezerro de outro. A escultura de Miguel Ângelo reúne os dois: o resplendor e os chifres. O novo traz sempre algo do antigo. Assim como o novo Deus não será sem os antigos, o desejo de um não será sem o do Outro. Deixemos registrado que não é difícil para quem está no lugar do analista confundir-se com o Outro e incluir seus restos no novo analisante. Esse é o motivo para valorizar o significante de preferência ao significado na interpretação do desejo, pois, afinal o desejo é sua interpretação! Constituído desde uma falta, o desejo se constrói, para usar o achado de Jeremy Bentham, como ficção! Quando lhes digo que o dever moral consiste em não abrir mão do desejo, estou pensando também no estudo de Valery Larbaud, sobre São Jerônimo, quando o Pai da Tradução ensinava que se deve escrever sempre, mesmo para uma geração que talvez nem nasça! Lembro de Kant acreditando que cada um deve fazer de tal modo que a máxima de sua vontade (willens), de sua ação, possa ser tomada como uma máxima que sirva para todos (allgemeinen). Aliás, penso mesmo que é nessa máxima que está assentado o estribilho do Hino do Rio Grande do Sul, redigido por Francisco Pinto da Fontoura: Sirvam nossas façanhas de exemplo a toda a terra. Um estribilho, aliás, que bem poderia fazer parte dos hinos de todos os povos. Quando Antigona tolera sua posição frente a morte, não se sentindo vítima, ela está respondendo ao desejo do Outro. É isso que lhe dá transcendência. E agora, para concluir, quero contar-lhes uma história a título de apólogo. Lacan também faz isso quando examina a questão da sublimação.8 Lacan recorre aí a dois apólogos de Kant. O primeiro refere-se ao dilema de um sujeito ao qual é oferecida a possibilidade de deleitar-se com a mulher amada, sabendo porém que na saída está o cadafalso onde será enforcado. O outro é o de um sujeito ao qual é oferecido escolher entre a morte ou o falso testemunho contra um amigo.9 A história que escolhi para lhes contar é real. Nela encontraremos ambos os dilemas. E ela vem contada por um escritor conhecido de todos, um desses literatos a quem Lacan chama de colegas, justamente porque sua arte está muito próxima de nós no domínio ético.10 Trata-se da história de Candolo, um tirânico rei de Sardes, na Lídia. Sua paixão pela esposa raiava à loucura. Obcecado por sua beleza, ele a exagerava aos amigos. E chegou um dia ao ponto de insistir com um dos soldados de sua guarda pessoal, Gigés, dizendo-lhe que ele precisava vê-la, pois não lhe parecia que o guarda acreditasse somente em suas palavras. De algum modo – quase como se fosse grego – lhe parecia que os olhos mereciam maior confiança dos que os ouvidos. - Da pulsão escópica em jogo, nem falar. A cada insistência de Candolo, Gigés tratava de dissuadi-lo, lembrando-lhe a insensatez de ordenar a um escravo ver sua soberana nua. Gigés encontrava assim um modo de recusar a proposta, receando uma desgraça. Mas o Rei tranquilizava-o e voltava a insistir. Até que uma noite conseguiu levá-lo aos aposentos reais, escondendo-o em um lugar de onde pudesse ver a rainha (sem ser visto) enquanto ela se despia antes de ir para o leito. Quando ela se virasse de costas para seu esconderijo, para se dirigir à cama, ele deveria aproveitar o momento para sair furtivamente por uma saída lateral. Desse modo, explicou Candolo, a rainha nem sequer tomaria conhecimento de sua presença. Mas acontece que a rainha viu. Viu e não disse nada! – Lembre-se que entre quase todos os povos bárbaros, mesmo para um homem, era um opróbrio ser visto nu. Mas a rainha, tendo logo entendido a trama de seu marido, suportou a ignomínia em silêncio e decidiu vingar-se. Na manhã seguinte, ela mandou seus mais fiéis oficiais chamarem Gigés e, sem mais delongas, apresentou-lhe diretamente dois caminhos: ou obter – através do assassinato do Rei C. – sua mão e o trono da Lídia, ou então a própria morte. Um dos dois tinha de perecer: quem a tinha visto nua ou quem dera a ordem de vê-la nua. Gigés optou pela vida. Matou o Rei, casou com a Rainha e governou por 38 anos. Ai está. Quem nos conta a história é Heródoto. Deve ter acontecido por volta do século VII a.C., cinco gerações antes que Ciro derrotasse o Rei Creso, descendente de Gigés, no ano de 543 a.C. – Heródoto conta essa história justamente para justificar a falência de Creso. Coisa de reis? Talvez... Para que possamos continuar, eu proponho utilizar agora a técnica fotográfica do Blow-up e aproximar a cena para melhor conhecermos esses personagens. Candolo, ou Candoleus, era filho de Mírsus, e por isto também chamado de Mirsila. Pertencia à família dos heraclidas, descendentes de Héracles. Seus feitos já não se pareciam em nada aos trabalhos do pai de sua dinastia, proezas voltadas a facilitar a vida do próximo, aí representado por seu primo Aristeu. Quer dizer, lindas – para Candolo -, não eram as façanhas de seu avoengo e sim sua mulher! Percebem a inversão aí presente? No lugar de um reinado dedicado ao próximo, o que faria justiça ao nome-do-pai de sua dinastia, a tirania a escravizar vencidos e a excitação obtida através do olhar do outro, pois certamente estão de acordo com a interpretação de que a mencionada convocação voyeur represente uma condição de excitação sexual. O grande trabalho de Candolo – se me permitem a ironia –, consistia em ter uma mulher bonita, mulher que para ele não passava de um simples objeto de exposição para a obtenção de prazer. Quanto a Gigés, este iniciador de uma nova dinastia, da casa dos Mermnadas, por que raios, como diria Zeus, foi cair nas graças do rei Candolo? Terá feito méritos para tanto? – Pois conta uma lenda que, quando pastor, Gigés encontrou um anel no dedo do esqueleto de um gigante. Ao apossar-se desse anel, reparou nele um estranho poder: quando voltava seu engaste para a palma da mão, seu corpo se tornava invisível aos olhos dos companheiros. Não é de duvidar que esse poder o tenha levado à guarda pessoal do Rei, pois esse anel mágico, enquanto metáfora, parece adequado para se falar do desejo capaz de levar uma pessoa, desde uma condição humilde, até a de Rei, mas enquanto aparelho, não parece o melhor método para instrumentar o desejo. Ah! Se o anel fizesse o Doutor! Platão, na República, se pergunta o que aconteceria a um homem que encontrasse um anel como esse. Sua tese não é otimista. Platão crê que ele terminaria por corromper-se na realização de atos ilícitos em benefício próprio! Acontece que se a invisibilidade é possível, ela nunca é total. Foi o que aconteceu com Gigés: tornou-se invisível para ver a Rainha nua, mas não se deu conta da identificação exibicionista do Rei - que gostava de ver-se sendo visto - com a Rainha. Ao introduzir um terceiro, Candolo perdeu a cabeça. Assim que, vitorioso, mas inseguro de sua vitória, Gigés se dedica a fazer doações ao oráculo de Delfos para que este o confirme no trono real. E o oráculo realmente o confirma, como se dissesse: - Se é o que queres, é o que terás! Mas isso não sem um porém: - Os heraclidas serão vingados – acertou a pitonisa –, na quinta geração do príncipe. Chegamos então a Creso, cujos filhos constituíam a amaldiçoada quinta geração [a partir de Gigés]. E então Creso sonha que seu filho morreria na ponta de um ferro. Ele tinha dois filhos, embora um não contasse por ter nascido surdo-mudo, e tratou de proteger, de todos os modos ao seu alcance, aquele mais desenvolvido. Os dardos e armas de guerra já não ficavam expostos e sim guardados em depósitos para evitar acidentes, afastou-o do exército e tratou de arranjar-lhe uma esposa. Percebem como está para se repetir o mesmo engano que levou Gigés ao trono: tomar uma mulher por mero objeto. Todo o ocorrido não ensinou a ninguém as consequências de desconsiderar a mulher como ser desejante. E agora o desfecho da história: tendo aparecido um enorme javali, causador de grandes estragos, devastando plantações, os aldeões foram pedir ajuda a Creso. Que ele mandasse seu filho a frente de uma escolta de jovens escolhidos, junto com os melhores cães, para dar fim ao flagelo. – Creso se apavora com a possibilidade de mandar o filho à luta. Prefere emprestar à população sua própria equipe de caça. O filho está em lua de mel - explica. A população fica satisfeita, mas o filho não. Não entende o que se passa! Creso se obriga a contar ao filho sua preocupação com o vaticínio. O filho escuta, entende a situação, e então argumenta que a luta será com um javali, um animal. Nada de ferro! Logo, não há nenhum perigo. Incapaz de contrariar o argumento, concorda e pede-lhe que leve por precaução um guarda-costas. E o escolhido é Adrasto, um jovem guerreiro, hóspede de Creso, cujo crédito era ter sido expulso da Frigia por ter morto inadvertidamente um irmão. – Estão entendendo? Na hora da luta, Adrasto arremessa o dardo sobre o javali, erra o alvo e atinge mortalmente o filho de Creso. Depois disso, Creso já não tem mais forças e o oráculo se cumpre. Candolo está vingado! Difícil não associar esse animal que se atravessa no caminho de Creso com o javali de Erimanto, um dos doze trabalhos de Héracles. Ao matar essa fera, o herói se apoderou de um símbolo espiritual, avançando em sua iniciação. Mas Creso não percebe nada disso. Creso não vê que os obstáculos da vida a dignificam na medida em que se os enfrenta. È isso, o significante busca a visibilidade. E, para concluir, só resta dizer que, se o estatuto da Psicanálise é ético, o do psicanalista é trabalho, trabalho com o significante. |
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