A
ORIGEM DA ESCRITA
Luiz-Olyntho
Telles da Silva
Porto Alegre,
16 de outubro de 2012
Senhoras e senhores
Levantar
el papel donde escribimos
y revisar mejor debajo
Levantar cada palabra que encontramos
y examinar mejor debajo
Levantar cada hombre
y observar mejor debajo
Levantar a la muerte
y escudriñar mejor debajo
Y si miramos bien
siempre hallaremos otra huella.
No servirá para poner el pie ni para aposentar el pensamiento
pero ella nos probará que alguien más ha pasado por aquí.
(ROBERTO JUARROZ. Levantar el papel donde escribimos.)
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TODOS SABEM QUE FALAR DAS
ORIGENS NÃO É FÁCIL. Ou não se estava lá, ou estávamos
inscientes. Desse modo, para falar das origens, só nos resta a via indireta.
Precisamos nos valer do que, por um meio, ou outro, ficou escrito.
Parece uma tautologia. Para saber das origens da escrita, examinar
os escritos! Contudo, é assim! Historicamente tem-se procurado encontrar
essas origens nas pinturas rupestres. Altamira, as vizinhanças de Lagoa
Santa, por exemplo, são provas da necessidade pictórica do homem. Acredita-se
que um risco podia representar a morte de um animal, mesmo a de um homem.
Um risco. Essa há de ter sido a primeira marca inteligente do homem, sua
primeira escrita, talvez com uma mão um pouco trêmula.
Muitos se ocuparam do estudo desses sinais. Entre eles, quero destacar
– como uma homenagem ao estudioso colega José Luiz Caon, que com esta
pesquisadora trocou correspondência por um longo ano –, os estudos de Denise
Schamandt-Besserat. Sua coleção de pedras riscadas, marcadas por
tokens, como ela designa esses sinais, dizem
desses tempos.
E, aqui, uma pergunta se impõe: por
que nosso antepassado fez isso? Por que esse primeiro risco? Saberia ele,
desde sempre, que a vida é um risco?
Avancemos uma hipótese: para escrever, com intenção de registro,
são necessárias pelo menos duas conquistas anteriores, a da fala e a do
instrumento, podendo a ordem ser inversa. Não preciso lhes dizer que a
capacidade de observação necessariamente deve ser ainda anterior. Mas
como essa aptidão está presente mesmo nos animais, muito não nos preocupamos.
A curiosidade, em todo o caso, como nos dias atuais, tem sido, desde sempre,
uma importante aliada da inteligência quando se trata de inventar soluções
para as necessidades.
Um antigo ditado reza que as palavras o vento leva,
e a escrita fica,
e outro, ainda, diz assim: a palavra saída da boca e a pedra
que sai da mão, não voltam. De um lado, o aforismo indica uma
grande proximidade da palavra com a pedra e, de outro, trata-se de uma
observação muito simples de compreender, pelo menos hoje. No tempo de sua
enunciação, não duvido tenha valido pelo ovo de Colombo. Elas não voltam,
mas deixam marcas! Para sermos mais exatos, como veremos adiante, não se trata
de que as palavras e as pedras não voltem. Na verdade, elas sempre voltam,
mas como esse segundo movimento aparece sob uma forma invertida, a conexão
de um movimento com o outro não é óbvio, e então dizemos que não voltam.
Porque o alvo, não podemos esquecer, tanto das palavras, como das pedras,
é sempre o outro. Talvez com uma queiramos aproximá-lo, e com a outra afastá-lo!
Hegel introduziu na filosofia uma
palavra muito interessante, a aufhebung. Com essa palavrinha, ele diz de um
movimento duplo; ao mesmo tempo em que uma coisa se supera, ela se conserva.
Na língua alemã, ela se refere, originalmente, à aufhebung
de uma pedra: quando se
levanta uma pedra do chão, no chão fica uma marca. Essa observação inaugural
deve ter sido um fato surpreendente! As marcas dizem de um acontecido,
de um passado.
Concomitante a isto tudo, séculos
entremeando cada avanço, antes dos sumérios inventarem a escrita cuneiforme,
acredito devermos dar importância também à existência de um grande quadro-negro.
Eu deduzo sua importância do costume escolar de ensinar através dele.
Quando aprendíamos as primeiras palavras, em outras línguas, ele sempre
estava entre as primeiras expressões: le tableau noir,
the black board, el quadro negro. Seu uso parecia universal! Agora,
quando eles começam a se tornar rarefeitos nas escolas, depois de terem
se tornado esverdeados, como por uma espécie de mofo, voltam a aparecer
nas telas dos computadores, os quais funcionam – não deixemos de registrar
–, quando brilham! Assim era a noite! Pontilhada de estrelas brilhantes,
sua constância devia dar uma certa segurança ao nosso ancestral, refugiado
em alguma toca, temeroso das intempéries e dos animais, surpreso, por certo,
quando cometas e meteoros e meteoritos riscavam a escuridão. Assim como
aprendeu a diferençar a noite do dia, aprendeu a diferença entre os riscos
que cortavam a noite e os que permaneciam fixos, possíveis de ler nos agrupamentos
estelares, representantes primeiras de suas mais importantes observações.
À noite, podiam ver a Ursa com a qual tinham lutado durante o dia. Tanto
a Maior, como a Menor. O grande quadro-negro as espelhava. Havia certa correspondência
entre a terra e o céu. O que aqui acontecia, estava escrito no céu. E as
constelações, como o nosso Cruzeiro do Sul, em geral desenham-se com cruzamentos.
Acredito que a possibilidade de cruzamento tenha aberto ao homem as portas
da cultura. Um risco e outro a cruzá-lo. Mesmo antes de estabelecer uma
relação entre coito e nascimento, já se sabia que a gravidez se devia ao
cruzamento da mulher, mesmo que fosse apenas por um lugar sagrado, um rio,
uma pedra. Embora a participação do pai não estivesse clara, logo se soube
que não havia vida sem cruzamento.
O poeta César Leal ressalta, na leitura
de A Divina Comédia, a menor quantidade de estrelas no hemisfério
norte, com relação ao hemisfério sul. Um fato que talvez indique terem começado
por lá as leituras celestes. E como o homem sempre quis se comparar aos deuses,
assim leu, quis escrever também!
Minha intenção,
com esses hipotéticos prolegômenos, é dizer que, de algum modo, a escrita
implica sempre em uma referência ao Outro. Escreve-se para dizer do Outro,
e para o outro. Para escrever requer-se sempre a leitura de uma escrita
anterior, escrita que pode estar tanto nas estrelas, como nas pegadas de
um animal, nos rastros de outros homens, nas nuvens, nas entranhas dos
animais, nas folhas de chá, nos sonhos ou nos livros.
Desses pequenos indícios devem ter
surgido os símbolos. O símbolo (Σύμβολον) representava, inicialmente, a uma
pessoa; era um sinal de reconhecimento. Uma pedra, ou mesmo um tijolo,
quebrado em dois, quando suas parte eram reunidas, sua juntura (Συμβολή)
permitia a identificação
do portador. Suponho que esta tenha sido a origem do nome próprio. Chesterton,
ao escrever O homem que era Quinta-Feira, o qual leva por subtítulo Um
pesadelo, se utiliza
desse recurso: Quando os anarquistas aí descritos vão para uma reunião,
utilizam como senha, para entrar em uma câmera secreta, o nome de
Mr. Joseph Chamberlain. Como seu autor busca dar ao romance
um caráter onírico, deixando todo o tempo o leitor sem saber exatamente
em que mundo está, o uso do nome de um dos maiores políticos de todos os
tempos tem grande serventia, justamente porque ajuda a confundir: fazendo
uma escansão na palavra chamberlain, veremos tratar-se do próprio sonhador.
Reconhecemos aí duas palavras, chamber, que se traduz por câmara, quarto, e
lain, o
particípio passado do verbo to lie, o qual, com sua tradução de estar
deitado, permite identificar
o sonhador como aquele que está deitado no quarto, sonhando, e, com a tradução de mentira,
lain ajuda o leitor
a saber que está no campo do engano, da farsa. Devemos registrar a inteligência
de Chesterton na escolha dessa senha: em 1908, quando publicou esse romance,
Chamberlain, que havia estado ativo na vida política desde 1886, por vinte
anos, até 1906, era ainda um dos nomes mais presentes na lembrança dos
leitores ingleses, e, possivelmente, também de todo o mundo, constituindo-se
assim em valioso antecedente para o propósito do autor.
É a indícios assim que Jacques Lacan,
com a ajuda da linguística, de Ferdinand de Saussure, chama de significantes.
São esses singelos traços que representam, agora não uma pessoa, mas sim
o sujeito frente a um outro significante. Quando encontramos uma Pedra de
Roseta, ou mesmo os calhaus de Schamandt-Besserat, nós imediatamente reconhecemos
que por trás daqueles tokens tem um sujeito. Embora possamos não
entender seu código, logo percebemos que um dia alguém se ocupou em fazer
aquela marca, na qual podemos entender algo equivalente, talvez, a um e-mail
contemporâneo ou uma mensagem lançada ao mar, em uma garrafa, na esperança
de que possa vencer os pélagos e alcançar algum leitor das vicissitudes
de nossa solidão.
Mas voltemos
um pouco.
Amadis de Gaula, considerado o primeiro romance de cavalaria,
que hoje conhecemos na versão de Garci Rodríguez de Montalvo, impresso em
castelhano, em 1508, mas que possivelmente seja ainda do século XV, e escrito
pelo português João Lobeira, conta, no capítulo V, quando fala de D. Galaor,
o ciumento de Amadis, que esse, na sua educação, lia livros de cavalaria.
Em outra versão - a qual, infelizmente, não consegui encontrar para trazer-lhes
a referência -, lembro que, em um momento, um cavaleiro vem andando, dormitando
sobre seu rocim. Talvez se tratasse do próprio Amadis, que tendo nascido
de um amor proibido, fora lançado às águas, como Moisés. Guiava-o a orientação
de sua cavalgadura em busca de um manancial, e, chegando a beira de um rio,
quando o flete baixa a cabeça para se abeberar, o cavaleiro acorda, os olhos
piscos, supreendendo-se com um velho cavaleiro, sentado às margens pedregosas,
lendo um livro de cavalaria. Embora esse tenha sido o primeiro romance de
cavalaria da península Ibérica, havia a necessidade de mencionar antecedentes,
e esses poderiam estar referidos a obra de Godofredo de Monmouth, do século
XII, abordando as lendas arturianas.
Quando Cervantes
compõe o seu Don Quijote de la Mancha, no século XVII, ele já está fazendo
uma paródia de todo este ciclo de romances. Não bastasse toda essa antecedência,
os próprios narradores da história ocupam-se desse valor: tanto o presumido
autor original das aventuras do engenhoso fidalgo, Cide Hamete Benengeli,
cujo texto nunca lemos diretamente, porque está escrito em árabe, quanto
o narrador anônimo, que se jacta de ser tanto o transcritor, como o tradutor,
mas que na verdade é seu editor, anotador e comentarista, nos fazem acreditar
que a história se desenvolve – como se se tratasse de uma caixa chinesa
–, dentro de outra história, anterior e mais ampla, como uma vez disse
Mario Vargas Llosa.
Cervantes, diga-se de passagem, foi
uma das primeiras influências sobre Freud. Ainda adolescente, fundou,
com seu amigo Eduard Silberstein, a Sociedade Castelhana. Seu objetivo: aprender espanhol
lendo as obras de Miguel de Cervantes! Em sua correspondência, adotaram,
como codinomes, o nome de dois cães, retirados das Novelas
Exemplares do patrono
do clube, intitulada O colóquio dos cães: Eduard era Berganza, um narrador inveterado, e Freud, Cipião
– o outro cão de Valadolid
–, um filósofo cínico e amargo. Desde aí seu gosto pela filosofia e pelos
clássicos. Mas é verdade que depois de Don Quijote
já não houve lugar para outro
romance do gênero. Como disse Kierkegaard, certa vez, toda
fase histórica termina com a paródia de si própria.
Já não havia
espaço para os grandes épicos. Os Lusíadas, Orlando Furioso,
a Divina
Comédia, a Eneida,
Os Anais, a
Odisseia e a Ilíada
tinham ficado para trás,
para sempre, embora os ensinamentos contidos em cada uma dessas obras permaneçam
também, para sempre.
Pelas obras posteriores, podemos
entender algo das antecedentes. Os Lusíadas, de 1572, é posterior ao Amadis
de Gaula, mas o episódio
dos amores de Inês de Castro com Don Pedro, parecem cumprir a mesma função
de intermédio trágico dos amores de Amadis e Oriana. O Canon da época
exigia que nenhum poema de larga extensão o exclui-se.
Em Orlando
Furioso (1516), Ludovico
Ariosto conta os amores de Orlando, o paladino de Carlos Magno, e a princesa
oriental Angélica, e também os de Rogério, um jovem guerreiro muçulmano,
pela valorosa guerreira cristã Bradamante. Aproveitemos para dar uma olhada
na antecedência do Romance: ele se propunha como uma continuação de
Orlando Enamorado, de Boiardo, publicado em 1483, em Ferrara
e evocado, entre outros, por [Antonio Frederico de] Castro Alves, em
Vozes d’África, quando verseja, na sexta estrofe:
Poetisa – tange os hinos de Ferrara. Trata-se de uma alusão à publicação,
aí, em Ferrara, além de Boiardo e Ariosto, também a Jerusalém
libertada, de Tasso.
Verdade que tanto o Orlando, de Ariosto, como o de Boiardo, tiveram
por antecedente o mal sucedido Bramante, de Luigi Pulci, escrito por encomenda
de Lucrécia, mãe de Lourenço, o Magnífico, que queria patrocinar uma epopéia
cristã em homenagem a Carlos Magno e Orlando. Mas, em Orlando
Furioso, lemos também
uma influência do Hercules Furens, de Sêneca, dos primeiros anos de nossa
era, e também as bases da História da loucura, publicada por Michel Foucault, em 1961,
pela primeira vez, e depois, em 1972, com novo prefácio.
Mas o intermédio amoroso mais belo que
existe, no gênero, em toda a poesia universal, na opinião do poeta César
Leal, está narrado, em A Divina Comédia,
no Canto V do
Inferno, nos amores de Paolo e Francesca. Este
é o relato, recitado pela própria Francesca, nos versos 103 a 105:
Amor, ch’a nullo Amato amar perdona,
mi prese del costui piacer sí forte,
che, como vedi, ancor non m’abbandona.
Amor, que a amado algum amar perdoa,
tomou-me, pelo seu querer tão forte,
que como vês ainda me agrilhoa.
(Tradução de Eugênio Mauro)
E não podemos deixar de registrar
que a inspiração desse amor, que atravessa os séculos, veio da leitura
de um livro o qual contava a história de amor do cavaleiro Lancelote, apaixonado
por Guinevere, a esposa do rei Artur. Aí não mencionado, o livro aludido
bem pode ser Lancelote do lago, atribuída ao escritor suíço Ulrich
von Zatzikhoven, do final do século XII. – Há sempre um antecedente.
Na Eneida, Virgílio, com o mesmo escopo, ainda
no primeiro século de nossa era, relata os amores de Enéias e Dido, por
certo um eco dos amores de Odisseu e Calipso, na ilha de Ogígia, descritos
por Homero no canto V da Odisseia.
Hoje, bem se
sabe que o objetivo de Virgílio, com Eneida, era a busca de uma genealogia tão grandiosa
para o Império Romano que remontasse aos deuses. Era uma preocupação da época.
Cerca de duzentos anos antes, Quinto
Ênio também escrevera uma epopeia com o mesmo objetivo, intitulada Os
Anais. Chegou a ter
algum sucesso e era ensinada nas escolas, tendo sido suplantada, nesse
mister, ainda que não rapidamente, por Virgílio, que nele se apoiou para
escrever sua Eneida. Escutem as palavras de Virgílio: Do
esterco de Ênio retirei o meu ouro.
O motivo do fracasso de Ênio reside
no fato de ele não ter se dado conta, ao que tudo indica, da mudança dos
tempos. Como é fácil, hoje, dois mil anos depois, dizer algo assim! Por
duzentos anos ele brilha, é recitado e estudado, até que outro o ultrapassa,
e passa a ser esquecido! Ênio sonhou ser a reencarnação de Homero, e
compôs Os Anais
como se Homero fosse. Temos de reconhecer que Homero foi mesmo um tipo
apaixonante. Em primeiro lugar, registremos que ele não escrevia. Depois,
ressalvada a hipótese de ter havido vários homeros, seu valor está em
ter recolhido os versos recitados há duzentos anos pelos aedos, impregnando-os
com força tal a lhes permitir continuarem a ser recitados por mais trezentos
anos, antes de serem escritos. O que Ênio não percebeu foi o fato de Homero
contar a história de homens que tinham por lei apenas sua própria consciência!
Quando Enéias está
em pleno gozo amoroso com a rainha Dido, em Cartago, Zeus envia-lhe um
mensageiro para lembrar-lhe que seu destino está mais adiante, na Itália.
Enéias, então, abandona Dido e obedece a Zeus! É bem diferente da atitude
de Aquiles, quando se recusa a combater os troianos. Agamenon, o grande
comandante, é impotente frente a vontade dos homens! Cada um luta apenas
pelo que considera justo. Guia-o apenas sua própria consciência! Aquiles
só retorna à luta para vingar a morte de seu amante Pátroclo (é quando,
de eromenós, passa a erastés). Frente à sua própria consciência,
ele não tem outra coisa a fazer! O Enéias, de Virgílio, porém, já está sob
as leis positivas do Império Romano, já não pode decidir apenas por sua própria
consciência. O homem – representado pelo homem grego –, que até então não tinha vida interior,
como nos conta o Prof. Donaldo Schüler, desse momento em diante estará para
sempre dividido entre o que é por dentro e o que é por fora. Além de sua
vida pública, terá uma vida íntima.
Antígona, a terceira peça do ciclo tebano, de
Sófocles, já declarara este drama. A heroína, seguindo ao imperativo de
sua consciência, representada nas leis divinas, vai contra a lei do estado,
representada por Creonte. E já sabemos do trágico resultado.
Em Os Lusíadas, Vasco da Gama segue os modelo de
Homero: como na Odisseia, canta os feitos de um homem e, como
na Ilíada, canta o espírito de um povo. Porém,
como o Enéias, de Virgílio, Vasco da Gama deve obediência cega ao rei;
não é súdito apenas de sua consciência.
Talvez por ter se dado conta da importância
dessa mudança, Virgílio tenha sido tomado, por tantos, como modelo. Dante
não tem dúvidas: Virgílio é o seu guia. Tu se’ lo
mio maestro e ‘l mio autore, canta ele no verso 85 do primeiro canto
do Inferno. Segue seus passos por todo o Inferno e o acompanha
pelo Purgatório,
onde recebe ajuda de Sordello e também de outros poetas. Mas ao Paraíso, onde lemos
os versos da mais rara beleza, Virgílio já não o acompanha.
O dilema entre a submissão à própria
consciência ou à legislação positiva, uma das marcas da divisão do homem,
não ficou restrita a outros tempos. O herói de hoje continua dividido.
O recente filme de Roger Donaldson, Seeking Justice, de 2011, que apareceu por aqui traduzido
como O Pacto, mostra bem essa divisão: buscando provas
para incriminar um grupo de justiceiros, que resolveram tomar a lei com as
próprias mãos, ele encontra, em um livro de Edmund Burke, de 1757 – que no
filme aparece com o título simplificado em Uma investigação
filosófica, mas que
na verdade ele se especifica em sua continuação, Uma investigação
filosófica sobre a origem de nossas idéias do Sublime e do Belo
(An Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the
Beautiful) –,
a seguinte citação: Não é o que um advogado diz, que
eu posso fazer, mas o que a humanidade, a razão e a justiça dizem, que eu
posso fazer. Eu diria
que sua alternativa à palavra do advogado, representante da lei positiva,
está baseada no julgamento de sua própria consciência que hoje já não pode
desconsiderar todas as conquistas sociais do homem.
Os gregos, não reconhecendo sua vida
interna, atribuíam-na ao exterior. É diferente de quando Dante passeia
pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso, descrevendo cenas acontecidas:
o destino de cada um, depois da morte, é construído pelo feito em vida;
mesmo quando faz previsões, ele se vale de um retrocesso temporal para
colocar no futuro fatos já acontecidos. Os gregos, esses, além dos deuses,
valiam-se das Musas! Hesíodo, um poeta também oral, como Homero, descreve
um encontro, havido por ele mesmo, com as Musas. Elas viviam no seu quintal,
por assim dizer. Seu pai havia comprado terras no sopé do Monte Helicon,
e elas viviam por ali. Abeberavam-se em uma fonte que fora aberta nesse Monte
por um coice de Pegasso, e, por certo, à sombra de bananeiras. Quando
viram o poeta, que ali apascentava suas ovelhas, presentearam-no com um
ramo de Louros, símbolo da autoridade poética.
Ironicamente, Enrique
Vila-Matas, em Bartleby & Companhia, diz o seguinte: — Quem
escreve o ditado das musas é apenas um copista!
Os sentimentos dos gregos estavam
todos personificados nos deuses. Zeus é, antes de tudo, a representação
do céu e da luz. Sua raiz indo-européia é dei, com o sentido de brilhar. Lembram do que lhes dizia do fascínio
pelas estrelas?! Atená, que nasceu de sua cabeça, representa inteligência
e é a guerreira que protege. Hera, sua esposa, representa o ciúme, a vingança
e a violência. Quando o homem sofre ou está feliz, é pela ação dos deuses
que o perseguem ou que o protegem. Então ele tem que fazer por agradar
os deuses, tanto para conquistar sua simpatia, como para evitar seu ódio.
Hecatombes agradam os deuses! Caim matou Abel porque, na sua imaginação,
Deus preferia o sacrifício da ovelha do pastor à sua messe. Os deuses
adoram o aroma da carne assada! Mas quem não gosta? Prometeu foi o titã
que roubou o fogo dos deuses para entregá-lo aos homens. Depois disso os
homens puderam queimar a carne em holocausto aos deuses, e também se aquecer
no frio e forjar metais para sua defesa e conforto. A etimologia de Prometeu
começa com πρό, com o sentido de antes de, por antecipação,
continuando com μῆθος, ver, observar, pensar, saber, e termina
com ευς, um sufixo frequente nos antropônimos.
As características de Prometeu estão presentes no homo sapiens;
a espécie se repete nos seus espécimes. Tomás Abraham, um filósofo contemporâneo,
em recente apresentação na Feira do Livro de Corrientes, na Argentina,
não deixou de ressaltar o ato de insubordinação, presente no gesto de Prometeu.
Sua infração acarretou-lhe uma dura punição, como nos contou Ésquilo. De
certo modo, toda inovação, ao romper com o passado, constitui-se em transgressão.
Sófocles, na tragédia Édipo
Tirano, deixa clara
essa falta de reconhecimento de uma vida interior. Geir Campos, que adaptou
a peça, para a Editora Vozes, ao descrever Édipo, o diz com muita felicidade:
O mesmo sol que, ao despontar sobre Tebas, o viu poderoso,
ao esconder-se no horizonte viu-o arruinado. Suas transformações interiores, que
por certo as haviam, são registradas apenas nesses movimentos. Foi Freud
quem resgatou toda essa mitologia relegada ao esquecimento pelo advento
da ciência. Ele reconheceu na mitologia a personificação da vida psíquica.
Diferençando o que o homem podia considerar como seu, daquilo que, não
conseguindo assumir, projetava nos deuses, foi construindo seu desenho das
instâncias psíquicas que hoje tanto nos ajuda na direção da análise de
nossos analisantes. Quando começa a clinicar, e escutar os relatos das histéricas,
aos poucos vai associando com suas leituras dos clássicos. E o Édipo
Tirano, de
Sófocles, lhe parece universal: a importância dessa estrutura, que então
percebeu como ternária, envolvendo o pai, a mãe e o filho, não estava,
por assim dizer, restrita apenas à Santíssima Trindade. Sua conformação
era decisiva na constituição de cada novo ser. Mais tarde, quando Lacan
retorna à leitura de Freud, ele dirá que essa estrutura edípica é, na verdade,
constituída por quatro elementos: além dos três já citados há que ajuntar
também o próprio fenômeno em questão, o Édipo. O Édipo, em si, para
dizê-lo com Kant, desempenha também um papel importante nessa estrutura,
agora quaternária.
Nesse propósito, quando Italo Calvino,
em 1991, pergunta: — Por que ler os clássicos?
Depois de sua primeira resposta
afirmando ser, antes de tudo, por um prazer extraordinário, principalmente
quando se os lê em uma idade madura, ele bem poderia ter dito que, por
essa leitura, Freud chegara à invenção da Psicanálise. Mas temos de considerar
também a hipótese de um livro se tornar um clássico por conseguir dizer
coisas que tocam a um grande número de pessoas. Mas isso, em absoluto quer
dizer que toque a todas! Balzac, por exemplo, entre os mais lidos na França,
aparecerá em último lugar na Itália, e Dickens, adorado por um fã-clube
fiel, na Inglaterra, na pátria adotiva de Calvino encontra apenas um restrito
número de admiradores. Mas Homero, Sófocles, Ésquilo, Eurípides, Virgílio,
Dante, Camões, Cervantes e Shakespeare, são para sempre, para todos, em
todas as partes.
Shakespeare também tomou Virgílio
como mestre. Citarei apenas sua última peça, A Tempestade: aparecem aí os amores de Ferdinand
e Miranda, em explícita alusão aos de Enéias e Dido.
O movimento de retorno de Lacan
a Freud se parece com o de Odisseu, de Homero: o noston
de Odisseu, não é uma volta
para casa, para aí ficar; ele volta para casa, para daí ir a outro lugar,
para uma nova aventura. Sua volta não é apenas uma viagem a mais, como
a do Ulisses de Dante que, muito provavelmente por não conhecer a língua
grega, descreve sua morte: em uma viagem, na qual, depois de ter fundado
a cidade de Lisboa, indo além da Taprobana, afoga-se quase às margens da
ilha onde se situa o Purgatório.
Lacan, aliás, cujo ensinamento foi
essencialmente oral, proferindo seminários durante vinte e sete anos seguidos,
de 1953 a 1980, publicou, em 1966,um alentado livro de mais de novecentas
páginas, com o singelo título de Escritos. A origem desses Escritos, por
certo está em Freud, mas não só.
Na abertura
da coletânea, ele cita três autores: Hérault de Séchelles, Poe e Pope.
De Hérault de Séchelles, menciona
Viagem a Montbard (que, tanto na tradução como na edição
original, aparece sem a letra d final). Seu autor foi um jovem político
que lutou na derrubada da Bastilha, em 1789, e que foi guilhotinado, como
seu amigo Danton, em 1794. Em Viagem a Montbard
ele conta uma visita feita
a Georges-Louis Leclerc, o Conde de Buffon, na qual falam sobre o estilo:
para configurar um estilo, a principal atenção deve ser dada à precisão
das ideias, dizia ele, depois vem a harmonia, que não deve ser negligenciada.
Lacan, contudo, destaca uma ideia, a qual, para entendê-la é preciso anotar
que Buffon não tinha os poetas em boa conta. Diz Buffon, na citação de
Hérault de Séchelles: - Le style est l’homme même, me répétoit-il
souvent, les poètes n’ont pas de style, parce qu’ils sont gênés par la
mesure du vers, qui fait d’eux des esclaves ; aussi quand on vante devant
moi un homme, je dis toujours : Voyons ses papiers. (Eu traduzo assim: O
estilo é o próprio homem, repetia-me ele amiúde, os poetas não têm estilo,
porque eles são constrangidos pela métrica dos versos, que faz deles escravos;
assim, quando elogiam um homem diante de mim, eu digo sempre: vejamos seus
papéis [no sentido,
eu acredito, de vejamos seus escritos].) Dessa frase, Lacan destaca sua primeira
parte – O estilo é o próprio homem –, mas ele adere a ela apenas para estendê-la
na pergunta: o homem a quem nos dirigimos? Por aí podemos ver não ser o homem sempre
o mesmo, dependendo sempre seu estilo daquele a quem se dirige. Um corolário
desse teorema pode ser entendido na seguinte afirmativa: —
Na linguagem, o emissor recebe do receptor sua própria mensagem, em
sentido invertido.
Por isso, uma análise iniciada com um analista jamais poderá ser continuada
com outro. Com outro analista, será outra análise.
Para mostrar que, mesmo assim, não
é perda de tempo endereçar uma mensagem ao outro, ele cita, de Edgar Allan
Poe, A carta roubada. A mensagem que está dentro do envelope
da carta, roubada à rainha por um dos ministros do rei, jamais chega
ao conhecimento dos leitores os quais, no entanto, seguem com atenção
crescente tanto os movimentos do Ministro para escondê-la dos sabujos
da Rainha, como os do detetive Dupin, para encontrá-la! Entre nós, não
faz muito, Luiz Alfredo Garcia-Roza, um professor de Psicanálise, do Rio
de Janeiro, criou um personagem inspirado no detetive de Poe: trata-se
do detetive Espinosa, que fez sua estreia na literatura no romance intitulado
O silêncio da chuva. Embora ambos tenham o mesmo espírito,
no conto de Poe, contudo, percebe-se mais claramente, o efeito de divisão
propiciado pelo objeto faltante, objeto esse do qual somos todos consequência,
e que revela a grande invenção de Lacan conhecida como objeto pequeno a.
Quem gosta de filmes de ação, lembrará de Missão Impossível
III, uma produção de
Tom Cruise e Paula Wagner, dirigida por J. J. Abrams, na qual o tal pé-de-coelho
cumpre a mesma função da carta roubada: os espectadores em nenhum momento
ficam sabendo do que se trata, enquanto os personagens se dividem pela
sua posse! – A análise de A carta roubada será o texto de abertura dos Escritos.
Alexander Pope aparece por seu poema
The Rape of de Lock, composto em cinco cantos, nos quais
critica, ridicularizando, a extrema delicadeza da corte da Inglaterra.
Mas o que interessa a Lacan é a forma das madeixas de Belinda: seu feitio
de bucle indica a circularidade do discurso, possibilitando uma leitura
topológica da palavra.
Como se vê, além de nos ensinar,
os textos anteriores nos ensejam e também nos ajudam a dizer o que pensamos.
Oito anos atrás, em 2004, eu publiquei um livro que, embora modesto, tinha
algo de pretensioso. Eu o batizei, em parte, por contraposição ao alentado
Escritos, do Dr. Lacan, com o curto título de
Leituras. Eu precisava dizer, na época, que nenhum
escrito é sem uma enorme quantidade de leituras. Eu estava pasmado com
as fotografias dos escritores, quando eles apareciam, nos livros, espaldados
sempre por uma grande biblioteca, ou escondidos, como Calvino, atrás
de uma montanha de livros. Esse modelo fotográfico, que antes me parecia
uma simples exibição, representava agora o escancaramento de um aviso:
Por trás de cada livro há uma enorme quantidade de
outros livros! E eu tentava dizer, no meu pequeno
Leituras, o que acontecia, por exemplo, a Jorge
Luis Borges ao ler Miguel de Cervantes. Na leitura de Borges, eu havia
ficado tocado com a influência cervantina em alguns de seus contos, de
modo especial em Pierre Menard, que tinha a pretensão de reescrever
o Don Quijote, letra por letra, vírgula por vírgula,
sem incorrer em plágio. Tentei dizer também o que acontecera a Donaldo
Schüler ao ler a Carta do achamento, de Pero Vaz de Caminha, e também quando
leu As metamorfoses, de Ovídio, e mesmo o Finnegans
Wake, de James Joyce.
Ao examinar a retórica da subordinação e da insubordinação, na carta de
Caminha, O Prof. Schüler ilumina o dealbar de nossas origens, desde a
ótica das construções hipotáxicas e paratáxicas, colocando-nos como herdeiros
de uma prática epistolar. Eu estava então muito impressionado com o que
Gerald Thomas havia feito com o Quartett, de Heiner Müller, assim como
estava surpreso com o modo pelo qual o jovem diretor Marco Fronchetti
havia adaptado Eurípides. E, claro, também estava maravilhado pelo modo
como Freud e Lacan leram Platão!
Platão, que viveu em um período
muito próximo da cultura oral, acreditava, como os demais fundadores da
filosofia, que o escrito desnaturalizava o conhecimento. Seu mestre, Sócrates,
não havia escrito uma só palavra, e ele, utilizando-se da difícil arte
do diálogo, bem soube o quão difícil é colocar em palavras o que se pensa.
Não por nada, ele dizia: para Sócrates a palavra é o fio
de ouro do pensamento.
Se Platão estava preocupado com o efeito de conhecimentos parciais lido por
pessoas despreparadas, o núcleo de verdade contido em sua preocupação era
de que não se podia escrever tudo. O pensamento é sempre muito mais amplo
do que se consegue escrever. Esse, aliás, é um dos motivos de dizer que
não há relação sexual, entendendo-se em relação, entre
outros sentidos, o de relato. Por não haver o relato sexual, ainda
que se tenha sempre de intercalar um intermezzo amoroso, nunca se escreverá
o romance definitivo. E, por andarmos sempre às voltas com um envelope cujo
conteúdo desconhecemos, temos sempre de escrever.
Se tanto o ato de ler, como o de escrever,
são solitários, eles têm, contudo, a virtude de nos colocar na companhia
de outros. Isso acontece tanto em momentos como esse, em que venho ler
meu escrito diante dessa distinta, amiga e atenta plateia, quanto, por
exemplo, ao acompanhar Ishmael à Capela dos Baleeiros, em New Bedford.
Eu mal o conhecia. Ainda não lera um décimo das quinhentas e noventa e
três páginas de Moby Dick, mas quando ele entra no silêncio abafado
da igreja, para proteger-se do temporal, e começa a ler nas lápides o
trágico fim dos marinheiros cujos corpos nunca foram resgatados do mar,
arrastados até nunca mais por uma baleia, ou a história do finado Capitão
Ezekiel Hardy, morto à proa de seu navio, por um cachalote, na costa do
Japão, em 3 de agosto de 1833, dizendo das saudades de sua viúva, eu me emociono
profundamente, como se fora amigo de Ishmael, e de toda aquela gente, desde
sempre. E fico grato a Herman Melville.
Do mesmo modo estou gratíssimo a Berenice
Sica Lamas, pelo convite para estar aqui, com vocês, e com todos esses
autores, dos mais famosos, ao nosso mais remoto, anônimo e solitário ancestral
que, desde o começo dos tempos deixava sinais de sua ânsia por companhia.
Berenice está exatamente na origem dessa escrita. Muito obrigado!