APRESENTAÇÃO DE
FINNEGANS WAKE / FINNICIUS REVÉM
 
 
Autor:
JAMES JOYCE
Tradutor:
DONALDO SCHÜLER
 
Livro 2
Capítulos 9, 10, 11 e 12
 
por
Luiz-Olyntho Telles da Silva
          Uma tradição de leitura tem dividido o Finnegans Wake de James Joyce em quatro Livros. O primeiro contém 8 capítulos; destes, os primeiros 4 (vols. 1 e 2 desta coleção) são dedicados ao pai. O volume 3 contém os 4 seguintes dedicados à mãe. 

          Neste 4º volume, Donaldo Schüler continua seu trabalho apresentando-nos sua versão dos capítulos 9, 10, 11 e 12, os quais compõem todo o segundo Livro, onde encontraremos agora os filhos como actantes e não mais como meros espectadores. 
No capítulo de abertura os actantes ainda não podem falar. Por isto teatralizam. É o sonho! FW é um sonho in progress. 

          Nos sonhos não há palavras, apenas imagens e quando aparecem palavras elas valem pelo valor de imagem, dizia Freud. Este poderia ser o pressuposto de Joyce na composição do FW. Os personagens sonham, são sonhados e, como nos sonhos, representam sempre outra coisa.  

          O sonho de Joyce com o Finnegans Wake parecia ser o de escrever um livro que fosse o livro dos livros. E aí encontramos desde os primeiros temas bíblicos como as trevas e a luz que surge de um Fiat, até os apocalípticos Gog e Magog (Ap 20, 8-9) que aparecem sob a forma de "Gadolmagtog" (246.6), reunidos pela corneta e prontos para a luta. Os quatro evangelistas sempre presentes. 

          Para contar a história do mundo começa pelo drama familiar: a rivalidade dos irmãos "eggspelidos" (230.5) lembra a de Caim e Abel. Ambos queriam alcançar a Deus, a luz, com suas oferendas, mas um acaba por matar o outro. Buscam o heliotropismo, mas o que conseguem é ser heliotrôpegos! Aqui estão os dois irmãos, Shaun e Shem representando respectivamente Chuff e Glugg. 

          Chuff é o Arcanjo Miguel que guarda as portas do Paraíso. Ser o porteiro de uma porta por onde só se sai é o prêmio por ter vencido a batalha contra Satanás. Glugg (onomatopéia de quem se afoga) é o próprio Satanás, o "mardito mau malandro" (219.24) que faz sempre tudo errado; é o alfaiate "desastre" (320.4) que nunca consegue cobrir corretamente a nudez do homem, o escritor que nunca escreve o livro definitivo. Chuff é o postalista que leva adiante o que o outro escreve. Mas esta divisão de aparência maniqueísta começa a confundir-se já no início da caracterização de Chuff: em Mr Sean O'Mailey (220.11) não se pode deixar de escutar o nome de Shem junto a Mailey (denotação de Mailman, carteiro); Donaldo Schüler verte O'Mailey para "O.Cota" que em japonês poderia soar como "furioso". A difícil conciliação de papéis assume seu ápice no cap. 10 quando os dois irmãos ocupam cada um as margens opostas do texto: na esquerda, as notas rebeldes de Shem por vezes parecem música; na direita as fórmulas sentenciosas de Shaun. À "Supervisão Panóptica do Progresso" proposta por Shaun (272.D1), Shem opõem  o solfejo das idade AC e DC (Cap. 10, Comentário 10). Mas e quando eles trocam de lado! Como saber quem é quem? 

          Começa o onírico show. Enigmático como todo o sonho, ele representa as questões de sempre, armado como "Rhebus" (que junto com "Rhombulus" [286.R1] ergueu Roma tal qual um rotacismo): Sin Showpanza, um Buda iluminado, percorre o mundo com os olhos abertos (whiteopen) ainda que cego. O brilho da riqueza almejada o cegou. Joyce está identificado ao tristiest cabaleer (234.3) onde Donaldo Schüler lê "cavaleiro de trieste" numa alusão à cidade em que o autor morou (301.15) por dez anos. Cabaleer é ainda aquele que lê a Cabala. O cavaleiro da triste figura é o donkey shot (234.4), o burro que carrega o chancho, vertido para o "Dom Qui xuta". Joyce é também o próprio Cervantes, autor destes personagens inseparáveis, de quem Jorge Luís Borges dizia, através de Pierre Menard, escrever a la diable. 

          A pureza de Chuff (225.30-31), com as especulares mãos lindas (Elleb Inam [237.26] - lidas de trás para diante) irá aparecer em todo seu esplendor na "abjura heresia allbigense" (240.13 e 350.32, v.g.) através da qual a igreja terminou com a raça dos cátaros: imaginem um Deus feito de bondade e maldade! A pureza lítica revela-se "lilíthica" (241.4), em alusão a Lilith, a primeira mulher que teria traído Adão com um anjo. 

          Certa vez Donaldo Schüler disse ter-se metido nesta empreitada incentivado pelos psicanalistas. Não há porque duvidar, embora esta certamente não tenha sido sua única motivação. Para que alguém se entregue a um trabalho exaustivo como este é preciso mais do que um incentivo vindo de fora, é preciso pelo menos um grande amor às letras, o quê o Prof. Donaldo tem demonstrado ao longo de sua vida e, acima de tudo, o reconhecimento da importância desta contribuição à cultura.  

          Só se conhece a própria língua, dizia Goethe, depois de conhecermos outra. A língua que falamos é sempre a língua materna, a língua de nossa mãe, logo, a língua do Outro. Aí a abertura para o conhecimento de outras línguas. Para construir o FW, Joyce utilizou mais de sessenta línguas usando-as por vezes na íntegra e outras associadas entre si formando neologismos fantásticos e prenhes de humor. Para reconhecer a força do resultado, nos ensina Isolda, é preciso conhecer entre outras línguas, também o "finnicano" (287.R4). Como se o identifica? Pela pronúncia. Finnicius Revém precisa ser lido em voz alta. É neste momento que aparece a força teatral da palavra finnicana. Pode-se reconhece-la pelo som peculiar: assim como os Galaaditas distinguiam seus inimigos, os Eframinitas, pedindo-lhes que dissessem a palavra "Chibolet" (Jz 12,5-6) sabendo que o seu dialeto só lhes permitia a pronúncia de "Sibolet", Joyce propõem "Que esta sibiletra seja nosso shiboleth assim que possamos silabá-la bem!" (267.20-21). Freud, que também reconhecia o valor da palavra, dizia nos Três ensaios (embora a tradução brasileira não o registre) que o reconhecimento do Complexo de Édipo é o Schiboleth da Psicanálise. Lacan, indo ao grão, diz que Shibolet é o significante do Outro (Sem. 6, Aula de 21.01.59). É assim - com a força do significante - que se pode reconhecer em "Quando Trocadilho é Troca de Milho?" (307.2-3) a versão de When is a Pun not a Pun?; o reconhecimento, na Schiboleth hebraica, de uma prosaica "espiga de milho" a autoriza. As diversas grafias da palavra podem dar conta da diversidade dialetal das línguas. 

          O sonho está constituído pelos restos diurnos. Onde Freud via condensação e deslocamento, Lacan vê metáforas e metonímias. Habitamos as vésperas. "Vespertiliabitur" (276.11-12). O dog de ontem é o "Sued" (276.11), lido ao revés, o God do sonho. A apresentação "verbivocovisual" (341.18) se impõe: a Catábase enunciada por Shem sob a forma de Catástrofe (indicadora de sobreviventes) faz contraponto a Anábase (304.E2) evocativa da obra de Xenofonte com o relato da expedição de Ciro contra seu irmão Ataxerxes II. Ciro morre aí, na batalha de Cunaxas. Joyce reconhece "Que proveito há em todo esse freudado saber" (337.6-7). 

          Se a erudita cultura e a fineza de Donaldo Schüler no trato das palavras já foram elogiadas, elogiemos também sua generosidade e sua criatividade: além de acompanhar toda a sua versão com comentários pertinentes adequadamente acapitulados, que se tornam imprescindíveis à leitura (compondo-se mesmo como uma outra obra) e de criar neologismos preciosos através de transliterações que permitem ler as diversas línguas através do português, o Prof. Donaldo ainda aproveita as brechas do texto para homenagear nossos autores - Rina Roner Reinette Ronayne se transforma em "Barba Ruyva em vez de Ruy Barbosa" (373.22); Ericus Vericus é vertido para "Ericus Verissimus" (373.24); swiping a johny dann sweept for exercitise myself se transforma, sob a pena de Donaldo, em "guimareando o joão pra dentro da rosa" (347.29-30) - nossos políticos - "Pensa nele como no velho Pedro Segundo bengalando emparis sua imperialeza como deus aposentado" (373.19-20); e também não esqueceu o "patriarca que silva, o bonifácio josefou andradita" (373.28-29) - e também nossas ruas: Lyndhurst Terrace se transforma na "Praça da Repútlica" (351.29); Mellay Street na "Rua Sãojoão" e as Lightnints Gundhur Sawabs nas "Fluorescentes Luzes da Farrapos" (351.32). É preciso de um pouco de cor local, paroquial mesmo, para identificar as figuras que o inconoscópio (349.18 e Comentário 17 do Cap. 11) nos apresenta. 

          Mas "Eu me perdi, onde é que eu estava?" (307R4) pergunta Isolda. Os evangelistas são agora as ondas narrantes que embalam o sonho de Tristão e Isolda a deriva pelo mar; tanto tempo n'água torna-os "solussantos" (386.15). Não nos preocupemos, "ainda que amorgaridas murchem, sonhos jovens florescem" (398.22). "Mas pra retornar" (295.15), "Diga-me onde. Um estalo de piscastellas" (295R2) responde Isolda. E Joyce, possivelmente inspirado na última linha do Canto XXXIV, onde Dante anuncia a saída do Inferno (andiamo a riveder le stele), propõe: "Segue-me agora no fulgor das estrelas!" (382.30). É noite. Já se pode sonhar.

 
 
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