A CORDA
Por
Luiz Olyntho Telles da Silva
1995
Est-ce à nous de camoufler
en mouton frisé du Bon Pasteur,
Eros, le Dieu noir?
LACAN, La direction de la cure
et les principes de son pouvoir
Ao iniciar esta apresentação, à guisa
de prólogo, gostaria de dizer-lhes umas palavras, pois à
medida em que estive escutando alguns dos trabalhos já apresentados,
e vendo o modo como se aproximavam ou se afastavam de minha própria
contribuição, uma idéia foi se formando em minha cabeça:
em algum momento se deveria usar o espaço das apresentações
para comentar aquilo que se escutou. Esta poderia ser uma maneira de fazer
render os 30 minutos de cada um. Aqueles que são sorteados para
o último dia, v.g., poderiam se ocupar disto.
Por este motivo tratei de abrir um espaço nesta
exposição para citar pelo menos aqueles trabalhos que pareciam
mais próximos, para citar aqueles trabalhos que pareciam dizer muito
melhor aquilo que eu mesmo gostaria de ter dito, como por exemplo o de
Hugo Levin à propósito da importância do semblante
com seus aspectos de descontinuidade e contingência; o de Isidoro
Vegh, pela relação topológica estabelecida do gozo
com a vida através da trama de um tecido que por aí se entretece;
em seguida Benjamín Domb, que chama a atenção para
a força do desejo da mãe e de suas repercussões na
pele da criança [e também em seu aparelho respiratório
como mencionarei em seguida]; Norberto Rabinovich e Jean Szpirko falando
de maneiras diferentes sobre o 'referente', expressam melhor do que eu
idéias com as quais estou de acordo, como, por exemplo, quando Norberto
diz que o que a pulsão de conservação conserva é
seu próprio referente de gozo, e quando Jean aponta para esta espécie
de selo de garantia implicado no referente, no referente 'Freud', por exemplo;
me senti no lugar de Celia Calvo dizendo que o analista está no
lugar do sentido, no sentido do Witz; e o que fazer sem o schwärmerei
platônico? O que fazer sem o entusiasmo bem lembrado por Paulo Medeiros,
pois espero que disto não nos curemos! Ademais, Paulo também
me fez pensar, quando distinguia o delírio poético do filosófico,
que o analisante, por valorizar a aparência das coisas, está
mais para o lado do poético; Gérard Pommier, por sua vez,
ao apontar o cuidado que se deve ter com o uso religioso da topologia,
me fez lembrar do que aprendi em recente visita ao castelo Borromeu, no
Lago Maggiore, junto a cidade de Stresa: o emblema, o nó, representa
para a família a união com os Sforza e os Meddici, e sua
hipótese era de que enquanto tivessem um membro de suas famílias
na política, outro no exército e outro na igreja, seu poder
estaria garantido; os comentários de Clara Cruglag sobre o nascimento
do objeto a tem também uma grande proximidade com
o meu; pareceu-me importante que Eduardo Foulkes tenha dito que a interpretação
é um tipo especial de leitura, uma leitura crítica e que
Liliana Donzis tenha dito que o efeito do simbólico no real implica
um sintoma; Roberto Harari lembrou que na repetição
nem tudo pode ser deixado por conta da compulsão demoníaca.
E para terminar este prólogo quero dizer-lhes que gostaria muito
que ao final de minha apresentação todos pudessem se sentir
como todos nos sentimos ao final do trabalho de Silvia Sara Wainsztein.
E agora, ao trabalho!
Com a contribuição de Lacan, à psicanálise,
houve uma retomada de uma série de conceitos freudianos que já
não estavam sendo tomados muito a sério. Um deles é
o conceito de cura. Freud recomendava aos iniciantes que não se
apressassem em curar, dizendo que quando queremos curar aí é
que não curamos e, enfim, que a cura, se ela sobrevem, será
por acréscimo.
Lacan a este propósito distinguiu no desejo um
que seria próprio do analista e que se definiria por não
ser o desejo de um analista, nem o desejo de ser analista, um desejo sui
generis, uma vez que é o desejo daquele que na análise ocupa
o lugar do morto justamente enquanto ser desejante. Para que a cura sobrevenha
o que o analista pode desejar é tão somente que haja análise.
E para isto, sua maior efetividade se dará quando
conseguir se posicionar como agente do discurso da psicanálise,
para o que ele precisa parecer, fazer semblante - como diz Lacan - de objeto
causa de desejo. E isto nem sempre é fácil; pelo contrário,
aqueles que tem a oportunidade de se ocupar de análises de controle
sabem o quanto é difícil ocupar um lugar de resto, um lugar
desde onde não se imponha sobre o analisante um saber já
sabido. Como já dizia o diabo, arte e ciência por si só
não bastam, é preciso paciência para o trabalho ir
em frente.
Apesar de saber disto, Freud defrontou-se, contudo, com
a rocha viva da castração: quando a análise chega
aí, não vai mais. Mas Lacan achou que se podia andar um pouco
mais, que se podia esburacar esta rocha, não com a Metapsicologia
da Feiticeira , mas com lógica e topologia. Assim que, para representar
este objeto responsável pelo barramento do sujeito, esse objeto
que por isto mesmo o sujeito está sempre em busca, e do qual o analista
deve suportar fazer semblante, ele apresenta seu invento fictivo chamado
objeto a minúsculo o qual, criado pelo percurso da demanda na alma
de um toro é logo deslocado para o espaço central formado
pelos três anéis de barbantes estruturados como um nó,
o nó borromeu, nó que representa o enodamento dos registros
do real, do simbólico e do imaginário.
A idéia é que com estes recursos lógicos
se possa esburacar esta rocha, eufemismo encontrado por Freud para falar
de uma repressão maciça. A repressão, em uma análise,
é algo com o que sempre se pode contar, é algo que sempre
está aí. Freud fala mesmo de uma repressão primeira,
primitiva, ele usava o prefixo ur para melhor caracterizá-la;
esta primeira tem que estar para que as outras possam sobrevir. E porque
a repressão está sempre aí, Lacan a situa no registro
do real, no registro do impossível lógico de modo tal que
ela não para de não se escrever. Bem, já sabemos
onde encontrar a rocha! E o cinzel vem de onde? O cinzel é
o que faz Moisés falar, se me permitem usar como metáfora
o texto de Freud!
A este propósito, queria contar-lhes o sucedido
nas entrevistas iniciais do que depois veio a ser uma análise. Trata-se
de uma jovem senhora, e seu motivo de consulta estava centrado
nas crises de asma de sua filha, uma menina de cinco
anos; além disto, reclamava também de que todas as responsabilidades
da casa e do cuidado das três filhas recaiam sobre seus ombros, o
marido não ajudava em nada! Já havia estado em um tratamento,
mas enfim, como não se interessa por sexo, quase não tinha
o que dizer, e ela e seu terapeuta acharam que o melhor era desistir. Passado
algum tempo, depois que ela acede em levar sua filha a um analista e que
as crises se não acabaram já são menos freqüentes,
menos intensas e basicamente já não tem o caráter
desesperador que costumavam ter, depois também de ter falado que
se ela não se interessava por sexo, seu marido, por sua vez, não
lhe dava folga, querendo-a todos os dias, depois disto, um dia em que vê
frustrados seus planos de deixar a filha por uns dias na casa de sua mãe,
avó da menina, porque esta avó temia que a pequena tivesse
uma crise, frase que teve o efeito de - ato contínuo - causar uma
crise, ela diz que acordou de madrugada, como sempre fazia, olhou o relógio,
como sempre fazia, e ficou esperando pela crise de asma da filha, que sempre
respondia, e que nesta noite, para sua surpresa, não respondeu!
E ela não conseguiu mais dormir até que o cansaço
a venceu lá pelo amanhecer do dia. Quando era ora de acordar, dormiu!
Neste momento ela situa na insônia um sintoma seu e não mais
da filha! - Trago-lhes este breve relato por acreditar que é
com este tipo de curto-circuito que em geral nos deparamos: a pessoa queria
que a vida fosse de um jeito e ela lhe sai sempre de outra!
Freud diz que a repetição, que é
um Wiederfinden der Identität, um encontrar de novo algo idêntico,
selbst (...) bedeutet, significa por si mesma, eine Lustquelle
, uma fonte de prazer, a fortiori uma fonte da pulsão. E
mais adiante, falando da repetição na transferência,
que é onde o analista pode escutá-la, ele diz que os restos
reprimidos de suas urzeitlichen Erlebnisse, de suas vivências
mais antigas - e não é demais lembrar que Erleben
implica em presenciar, assistir, experimentar, sofrer, e também
que o aspecto surpresa não está ausente - que estes restos
não se encontram gebundenen, i.e., não se encontram
em estado vinculado, mostrando-se mesmo incapazes, nicht fähig,
de obedecer ao processo secundário. E é a esta Ungebundenheit,
a esta não vinculação, a esta liberdade, que se deve
sua capacidade de formar, através de uma conjunção
com os restos diurnos, a Wunschphantasie, a fantasia de desejo que
aparece no sonho, bespiel, eu poderia acrescentar. E por que proponho
acrescentar este 'por exemplo' ao caso do sonho? Bem, não lhes parece
que podemos estar frente a uma fórmula geral de formação
fantasmática? Pois escutem só o que Freud nos diz na frase
seguinte: "A mesma compulsão à repetição freqüentemente
se nos defronta como um obstáculo ao tratamento, quando, ao fim
da cura, tentamos induzir o paciente a desligar-se completamente do médico."
E o que dá medo, diz Freud, é que o surgimento desta compulsão
é da ordem do demoníaco, dämonischen Zwanges
diz ele.
Sabemos por Freud que o que determina a fonte da pulsão,
uma zona erógena, é a relação do sujeito com
seus objetos primários, os quais o mais freqüentemente são
constituídos por seus pais, especialmente a mãe que se ocupa
dos cuidados fundamentais, de modo que não é difícil
supor a importância da mãe para um ser que por suas características
de incompletude é jogado no mundo em estado de desamparo psíquico
e motriz. Daí que quando Freud fala
em vivências mais antigas, ele está falando das experiências
vividas com o Outro maiúsculo que o introduziu na linguagem, pois
a condição do sujeito depende do que se desenvolve no Outro,
em A . Quando Freud fala no Furcht, no medo do surgimento desta
compulsão demoníaca, ele usa para 'surgimento' a palavra
Auftreten, a qual se tem este sentido de 'entrar em cena', também
conota a violência de um 'arrombamento feito com os pés',
daí que não é à toa que o fantasma que tende
a aparecer, como nos dizia Freud, através de uma cena, pareça
sempre tão assustador.
Lacan nos diz, utilizando-se do esquema R, que o fantasma
resulta de uma dobra do simbólico sobre o imaginário, mas
este não é o lugar onde melhor se pode observar a eficácia
do simbólico. De certo modo, nesta dobra o simbólico se submete
ao imaginário. O espaço onde aparece a eficácia do
simbólico - e agora já não nos basta a topologia do
esquema R, precisamos do recurso da topologia dos nós, especialmente
do nó borromeu - o espaço onde veremos aparecer esta eficácia,
é no limite do real, como nos lembrou Isidoro Vegh na última
Lacano.
Se o registro do imaginário contribui em muito
para a produção fantasmática, convém lembrar
que não é neste registro que ele se situa. A consistência
do imaginário se define como um fora do gozo fálico, gozo
este que estaria no limite do simbólico com o real. E este real,
por sua vez ex-siste ao sentido que se situa no limite do simbólico
com o imaginário. Pois bem, se o imaginário consiste como
não gozo, e o real é o que exsiste ao sentido, é o
o que está fora do sentido, o que resta ao simbólico? Lacan
é claro na resposta: por exclusão, um buraco! Um buraco como
aquele, por exemplo, que se abriu no meio da noite para a jovem senhora,
permitindo-lhe reconhecer um sintoma. Por outro lado, sendo o simbólico
o registro que dá conta da linguagem, podemos nos perguntar por
que sua eficácia está no limite com o real e não no
limite com o imaginário? Acredito que a resposta a esta pergunta
pode ajudar na delucidação do por que às vezes o analista
se defronta com algo duro como uma rocha.
Quando o analista envereda em direção ao
imaginário, por força do sentido a atravessar, ele precisa
estar estruturado em torno a um saber, a um saber sabido diria, um saber
que compreenda este sentido, um saber característico do discurso
da universidade, o qual, ainda que produza um barramento no sujeito, ainda
que lhe produza um buraco, este buraco buscará apenas ser preenchido
por mais saber. Por outro lado, quando envereda em direção
ao real, é o significante que dita o procedimento, justamente o
significante fundamental que por ser desprovido de sentido vem se propor
como interveniente no gozo que aparece nesta lúnula. É
possível que quando o analista esteja preocupado com a 'cura', esta
preocupação o faça enveredar pelo lado do imaginário,
enquanto que ocupado pelo desejo do analista ele pode dedicar sua atenção
flutuante a estes stoiceion - esta
agulha que Aristóteles retira dos relógios solares - os quais,
ao sobrenadar ao discurso, sempre servem para dar alguma indicação,
uma indicação menos assustadora da função fantasmática
dos restos reprimidos de suas vivências mais antigas.
O problema é que a ação cinzeladora
do significante exige uma paciência, uma geduld dos infernos.
Assim que a repetição que se aferra a um gozo, é a
repetição que desconsidera a força do significante.
Quando Tancredo trespassa sua amada Clorinda, ele o faz sempre por engano,
e se enganará sempre enquanto não reconhecer a importância
do falo.
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