ISOLDA, A LOURA:
AS MULHERES EXISTEM
por
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Escrever é travar
uma guerra para unir o que
irremediavelmente se
rompeu.
DONALDO SCHÜLER, Notas
de leitura ao primeiro
capítulo de Finnicius
Revém: Penisoldada Guerra [3.4-14].
Descobrir Joyce será
sempre aventura de cada um.
DONALDO SCHÜLER, Introdução
(ao primeiro capítulo
de Finnicius Revém).
Iahweh Deus disse: “Não
é bom que o homem esteja só.
Vou fazer uma auxiliar
que lhe corresponda.” [...] Então
Iahweh Deus fez cair
um torpor sobre o homem,
e ele dormiu.
GÊNESIS, 2, 18 e 21.
Assim
como batizei este texto de Isolda, a loura, poderia tê-lo chamado
também de ALP, Anna Livia Plurabelle, Eva, Isis, ou simplesmente
mulher, Îshsha.
O fato de tê-lo batizado assim, deve-se
ao destaque que a personagem adquire no Finnegans Wake, de James Joyce,
traduzido ao português por Donaldo Schüler. Não é
sem motivo também que Donaldo dedica à personagem o maior
dos parágrafos da introdução ao primeiro capítulo,
coincidente com o primeiro volume da coleção que, plagiando
o work in progress do autor, está editando a obra: o mencionado
parágrafo compreende uma página mais uma linha e tem o dobro
do tamanho dos maiores. E o quê isto significa? Talvez tenha sido
o mais difícil de escrever!
Pois enfrentemos juntos esta dificuldade. Será
através desta proposta que pretendo lhes mostrar algumas das coisas
que tenho aprendido com nosso mestre comum.
Quando Joyce batiza sua personagem de Anna
Lívia Plurabelle, a esposa de HCE (também de muitos nomes),
ele a inclui em uma família distinta pela contração
do plural com a beleza: ela pertence a uma família de muitas belezas,
a família Plurabelle. Designá-la pelas iniciais ALP denota
uma importância primeira às iniciais às quais os nomes
serão sempre plurais. Iniciar seu nome pela primeira letra do alfabeto
conota origem: ALP está na origem da vida. O A maiúsculo
de nosso alfabeto coincide com o alfa grego maiúsculo o qual inverte
o alef fenício reeditado pelo hebraico. Sua passagem pelo grego
leva-nos ao encontro da privação: Anna é uma extensão
do mesmo alfa privativo da
que leva Heidegger a dizer que o conhecimento da verdade é da ordem
do roubo. Lívia, o segundo nome, indica que ela é um ser
para a morte.
Eva é oficialmente a primeira, mas Joyce
não desconhece um caso anterior de Adão com Lilith que o
trai com um anjo. Isis é a grande mãe do Egito que recolhe
e reúne Osíris espedaçado. Îshsha é como
Adão, hebraico, nomina Eva em seu sonho: a que saiu de Îsh,
a que saiu do homem. Mas não vou abusar da transliteração
que o tempo é curto.
Joyce sabe que La mulher não
existe e assim as vai tomando uma a uma através de suas qualidades
particulares. Suponho que se possa tomá-la como metáfora
para a verdade que toda não se pode dizer.
Isolda isola em seu nome uma ilha, uma isola, como
se diz em italiano, quem sabe mesmo uma ilha flutuante que viaja pelo rio
Lifey cujo ricorso vai em direção ao mar para que
o discursório possa recomeçar... e rolarioanna.
Isolda fala ainda do mesmo, do iso que se solda.
Isolda é o nome de todas as mulheres soldadas, e ela sabe disto.
Para que a solda seja possível, entre
um elemento e outro, requer-se a presença de um terceiro elemento,
o que solda. No caso de Isolda, o terceiro elemento ora é o Rei
Marc, tio de Tristão, ora sua própria mãe, solícita,
temerosa e ingênua crente na domesticação do falo.
Conto-lhes um pouco do ocorrido a partir do
relato do Professor Schüler, do nosso Profaluno, como o designei em
um texto anterior ao lançamento do mencionado primeiro volume do
Finnegans Wake.
Trata-se de uma história de amor, fatal
como toda história de amor. Isolda entra em cena através
de Tristão. Isolda é o sonho de Tristão como Eva é
o sonho de Adão. A solidão deve ser insuportável porque
aí nada acontece. Tristão assim se chama, não por
ser ele uma pessoa triste, mas porque sua mãe, Blanchefleur, ainda
grávida, ao saber da notícia da morte do marido em batalha,
quer dizer, na luta pela vida, de florzinha branca passa a apenas branca;
lívida, nomina seu filho com a personificação de seu
sentimento mortal.
A história ganha vida quando Marc, Rei
da Cornualha, necessitado de um herdeiro, aceita a idéia de se casar
e escolhe a noiva por um fio de cabelo louro, fúlgido como um raio
de sol, deixado no palácio por duas andorinhas. Bonitinhas! Mas
a presença deste traço unário, deste einziger Zug,
já permite antever que este casamento está por um fio. Marc
pede então a Tristão, seu cavaleiro favorito, educado e viajado,
que vá a Irlanda e lhe traga a Isolda do cabelo fulvo. Uma espécie
de casamento por procuração, tão comum em todos os
tempos. O que Marc não sabe é que Tristão já
conhecia Isolda... de outros carnavais, digamos. E ao chegar as proximidades
de Tebas, quero dizer, da Irlanda, nosso herói dá cabo do
dragão, do monstro, da esfinge que nestas ocasiões soe flagelar
a região. Como prêmio: Isolda. Mas a mulher não deveria
ser para ele, estava prometida ao tio Marc, e a futura sogra de Marc, querendo
garantir o futuro da filha, para o seu bem (!), prepara um poderoso amavio
para que a aia de Isolda dê aos noivos na noite de núpcias.
Ela quer induzir o amor. Eu diria que a mãe de Isolda sabe que não
existe isto do chinelo velho para um pé torto. Se acontece,
não será por força da natureza e sim por força
- no dizer de Lacan - de uma fórmula romântica: era fatal!
Estava escrito! A viagem pelo Lifey é longa e, abrasados pela sede,
Tristão e Isolda, os corpos suados e já sem pensar em mais
nada, inadvertidos, servem-se da filtrada bebida. Tristão é
então – para empregar uma palavra de Joyce – suck, tragado
pelo glubglub do buraco e não se dá conta de que La
mulher não existe. O resultado é que ao entregar Isolda ao
tio já tem o título joyceano de “violeiro d’amores” e, mais
tarde, quando recebe por esposa a Isolda das Mãos Brancas - uma
contração edipiana de Blanchefleur com Isolda - lhe sobrevém
uma impotência que o impede consumar o casamento. Sabemos que não
é raro uma tristeza matrimonial suceder a uma fogueira pré-nupcial.
Por outro lado, se Tristão não
sabe que La mulher não existe, Isolda tem disto uma certa
clareza que lhe possibilita multiplicar-se nos sonhos de Adão, Osíris,
HCE, Porter, nos rios da vida, no princípio feminino, em Géa,
a terra, em tudo o que possibilita a restauração da vida.
Contudo, ser tomada como uma é o seu sonho. É neste sentido
que Don Juan é o sonho da mulher. Ele sabe que seu número
é mille e tre, e as foi tomando uma a uma, mas isto só
na Espanha, porque “In Itália seicento e quaranta; in Almagna
duecento e trentuna; cento in Francia; in Turchia novantuna”. E Isolda,
quando se trata de seduzir, adota um número mais modesto: vinte
e nove.
Tratando-se de números, pulemos do primeiro
para o décimo quarto capítulo, onde – por Dons e dom – Joyce,
pela mão de Don Aldo, escreve assim:
Bem,
não havia nada menos que vinte e nove filhas do saber
vindas do curso noturno da escuela nocional Benente Senta Frígida
(pois
pareciam recordar como era outrora, há um ano bissexto) aprendendo
a matutina lição da vida, sob sua árvore, contra
a advertência dela, assen-
tadas como de hábito à margem da ribeira, atraídas
pela rarenruçadís-
sima visão da pedramarela, primeiro marco da divIsa humana
(o urso em curso, o rei de todos os corsos, sir Humphrey, seu valete
quencontramos no porto!) enquanto partiam remando ao ritmo
magnético de cinqüenta e oito remos jogando cabra cega,
misto
de alô estafeta postal, tão joanicamente, todas desnudas
na florescência
juvenil, descrevendo charmoso dactilograma de mariposas,
ainda que repelidas pelo ronco do duro olhar fincado hirto na
relva, infindo, influxível, quando liqüidado em pinga,
(vil!) murmoura
abassordamente em holondrês noitivo, viesivelmente inabalado,
sobre o tresouro trazido à coroa: Dotter dead bestead mean
diggy
smuggy falsky! (430.1-16)
No
meu entender, trata-se neste parágrafo da sedução
de Isolda. Eis como o leio: comecemos pela sexta das dezesseis linhas,
pelo “marco da divIsa humana”; divisa onde o I de
Isa aparece com letra maiúscula, indicando o nome de Isolda
como originado de Marc[o]. Trata-se da sedução de sir Humphrey,
HCE - o Homem a Caminho Está - que aparece seduzido no parque
ainda no início do livro. Trata-se de uma recordação
a qual leva a pensar no efeito circular da vida cuja escola é sempre
retomada por Santa Frígida em sua ânsia de um ano bissexto,
vale dizer da diferença. E é com a ajuda da lua, princípio
feminino e símbolo do sonho, com todos seus vinte e oito dias aos
quais se soma, que ela retoma a aprendizagem da matutina lição
sob a árvore da vida e contra a divina advertência. Lembram
que a mulher é a primeira a falar: ela fala com a cobra, trocam
informações, há um diálogo. Adão já
falara, mas era só para dizer qual era o nome dos animais que Deus
havia criado. Eva fez mais: conversou com a cobra - é a primeira
prosopopéia da Bíblia. Eva é tentada a ter o saber
e o poder dos deuses, representado por Don Aldo na pedramarela valorizada
por sua rareza. E as vinte e nove filhas, ávidas do saber oriundo
da árvore genealógica, concentram suas forças redobrando-se
através de um jogo catoptrono nos cinqüenta e oito remos juvenis
desnudos que impulsionam sincronicamente a galera magnética em busca
do ‘procuro mas não sei o quê’ enquanto esvoaçantes
mariposas desenham no ar um charmoso dactilograma. É noite de São
João: estamos no sonho de uma noite de verão. Isolda se multiplica
pelas jovens desnudas, pelas mariposas, pela noite, tentando dizer tudo,
de todas as formas, ao mesmo tempo. A sincronia, como em um quadro, domina
a cena. Em cada jogada é jogado tudo e o multifacetado do objeto
impede sua apreensão como todo. De tanto se recobrir de todas as
cores, o colorido tende ao preto onde a distinção é
difícil. Enquanto Freud equipara a mulher ao Continente negro, ao
desconhecido que a África representou para o homem por tanto tempo,
o jauntil Sr. Jaun Humphrey de HCE, influxível, concentra-se na
relva, na embriagante florescência de Géa para, qual Don Juan,
não se perder no multicolorido calidoscópio. Contudo, ainda
não é isto que a eterna insatisfeita quer! E nos perguntemos
então o quê ela murmoura no seu holondrês noitivo: será
que ela pede que se recuse o que oferece, porque isso não é
isso? Ou, quem sabe, diga o que diggy, soa falsky? E não
é justamente sobre a suposição do falso que se funda
a verdade? Ex falso sequitur quod libet, respondem os escolásticos.
Pois é isto: neste caso tomo a mulher,
Isolda, como metáfora da verdade que sempre buscamos e nunca encontramos
como um todo. Dividida em suas partes, contudo, elas existem a condição
de serem tomadas uma a uma. Descobri-las, se me permitem parafrasear nosso
homenageado, será sempre aventura de cada um.
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