A PALAVRA NÃO É O BASTANTE
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(THE WORD IS NOT ENOUGH)
UMA APRESENTAÇÃO DE
FINNICIUS REVÉM    /    FINNEGANS WAKE
DE
DONALDO SCHÜLER
 
por
Luiz-Olyntho Telles da Silva
 
                  A palavra (Word) não é suficientemente forte para organizar o confuso mundo finniciano (world). No logocosmo, luz e trevas se interpenetram indissoluvelmente. O discurso, que se quer esclarecedor, obscurece.
                  DONALDO SCHULER, Notas de leitura ao capitulo 7 de Finnicius Revém (p. 249).

          Apresentar um texto de Donaldo Schüler é uma honra e um privilégio pelo qual agradeço ao gentil convite do IEL e de sua Diretora Cíntia Moscovich. Apresentar um texto de James Joyce, ainda que nesta maravilhosa tradução do Donaldo, é uma temeridade, pela qual me desculpo. 
          Assim, é com respeito, consideração e cautela que o faço.
          A tradução(1) de Finnegans Wake tem características especiais. Ela exigiu do tradutor não apenas seu grande conhecimento de línguas e sua cultura extensa e intensa, mas também toda sua criatividade e, sublinhe-se, seu excelente bom humor. Diferente da tradução francesa da qual se poderia dizer que segue o texto mais ao pé da letra, diria que esta segue mais ao espírito, ao propósito do autor e à estrutura que este obedece em sua composição.
          Comecemos pelo título, cuja tradução Donaldo Schüler adota dos irmãos Campos, como quem adota um filho. E haverá outro jeito de ter filhos que não seja adotando?
          Finnicius Revém. A primeira palavra já começa pelo fim e termina pelo início! Ironia? Sua companheira, Revém, pode dar-lhe um sentido: pode-se ler aí um re-vir, um retorno e também uma revolta. Arroga-se e arrega-se [149, 32](2). Lembra a história do português perguntando, surpreso, em sua primeira viagem ao Brasil: ‘Quê língua é esta q’estão a falar q’entendo tudo?’ Sejamos portugueses: Quê língua é esta que português não é? A penúltima Nota de Donaldo (308)(3) , como um longo sustenido, nos dá a pista: trata-se do Brasilário! Brasil hilário? Uma língua, em todo o caso, à qual se ascende também pelo latim. Exclamemos então com Shem, na bem humorada versão do tradutor: Macacos me merdem se tenho a mais franga noção desse emorrinhado todo [122, 5-6]! A companheira de Finnicius pode ser de origem francesa, pode mesmo sonhar. Trata-se de um rêve, de um sonho.
          O Wake joyceano é ‘despertar’, mas também conota ‘devaneio’ e com ele também se ‘vela’ um defunto, um defunto do qual não se pode senão seguir o exemplo, in the wake of.
          O volume que estamos apresentando corresponde apenas aos capítulos 5, 6, 7 e 8 os quais encerram o livro I de um total de IV. O texto da orelha, assinada por Sérgio Medeiros, nos dá uma boa visão do conjunto destes capítulos e é instigante desde o início: começando com a estabelecida máxima de que “não se pode ler Joyce”, ele acrescenta que “apenas podemos relê-lo”. Esta primeira frase já abre para um paradoxo: Como se pode reler algo que não se pôde ler?
          A impossibilidade da leitura não é nova. Por muito tempo também não se pôde ler a pedra de Roseta. Precisamos de textos paralelos. E também não podemos desconsiderar a ironia: o Marquês de Sade, por exemplo, abre A filosofia na alcova com a seguinte recomendação: “Que toda a mãe prescreva à sua filha a leitura desta obra”. Ora, eu não creio que alguma mãe jamais tenha seguido este conselho. De modo que o impedimento, a proibição, nos serve como atrativo.
          Antes da invenção da psicanálise, dos sonhos também se dizia que era impossível lê-los, pelo menos seriamente; ficavam apenas nas mãos dos adivinhos; a ciência oficial não se interessava por eles. Os sonhos não tinham sentido, e não se pode viver fora do sentido.
          Então aparece esta obra construída, conforme a opinião dos críticos e também do tradutor, ao estilo de um sonho.  – Se o sonho, como formação do inconsciente, está estruturado como uma linguagem, então a linguagem do Finnegans Wake está estruturada como um sonho.
          A ambição do autor parecia ser a de construir um novo livro dos livros, um livro que abarcasse todo conhecimento, uma nova Bíblia em linguagem onírica.
          Se estamos no inconsciente, atentemos, então, para as leis que lhe são próprias – Joyce também não descura da lei dedicando-lhe todo o capítulo 6, e o tradutor convoca a teoria psicanalítica. Pois vejamos: no inconsciente vige o processo primário o qual define a energia que o move como sendo livre; ao contrário do processo secundário onde a energia começa por ser ligada, ligada às palavras, no inconsciente ela pode investir do mesmo modo todas as representações. O modo como Joyce constrói as palavras, muitas vezes dividindo-as em pedaços, como se fossem coisas, ora juntando a prótase com a palavra [ou com a sílaba da palavra] anterior, ou a apódose com a posterior, ou ainda deslocando um dos pedaços para outra parte da frase ou do parágrafo, caracteriza a ação deste processo primário. É preciso utilizar os implícitos e proteifórmicos arcos característicos dos grafos formadores da poliédrica escrita [107, 8].
          E como interpretar um sonho? 
          Por estas coincidências da vida, no ano em que Joyce começa a trabalhar no Finnegans Wake, em 1923, Freud publica as suas Observações sobre a teoria e a pratica da interpretação de sonhos. Estas ‘observações’ constituem reparos a sua Traumdeutung. Ele retoma aí alguns princípios técnicos e insiste sobre algo que me parece muito importante: o valor da repetição. Também insistirei sobre este ponto, partindo de algo dito por Freud no famoso capitulo 7 de sua Interpretação de sonhos. Aí, entre tantas coisas sumamente importantes, ele diz o seguinte: “Temos tratado [o sonho] como um texto sagrado (como eine heiligen Text)”. E isto implica que se dedique “a mesma importância a toda nuança das expressões idiomáticas oferecidas. Mesmo quando encontramos uma palavra desprovida de sentido ou inapropriada, parecendo indicar que não se encontrava tradução exata no sonho, nós temos respeitado esta falta.”(4)  O que Freud entende por ‘texto sagrado’ é isto: um texto no qual todos os seus elementos têm o mesmo valor, merecendo, portanto, a mesma consideração. Pois me parece ser assim que o Prof. Donaldo se ocupa do texto, valorizando todos os termos em seu conjunto para ver como eles melhor se acomodam transpostos para uma outra língua. Os comentários que ele generosamente nos oferece funcionam como uma espécie de texto paralelo que nos permitem acompanhar o texto de Joyce.
          O conjunto destes capítulos que estamos examinando está dedicado à mãe, Ana Lívia Plurabelle. Ela encarrega um de seus filhos gêmeos – Shem – de contar sua história. Sua história é a história do mundo. Shaum será o carteiro, o apóstolo (do hebraico Shebah, mensageiro). Em poucas palavras, de modo condensado, iluminada pelo trovão (aumentativo de trova?), ela vai dizendo logo o que interessa: Madamas, Madamaminhas, Meusveados! Prufervor! Quiero decir a vícola ver dade a ré speito do Cocoricó [113, 11-2]. Sem mais choumela, falemos franco em turco [113, 26], sejamos miguelinos ou luciferinos [113, 27]. O mamafesto [104,4], revelação da festa da mama, que o carteiro vai levar para o mundo, é encontrado por uma galinha, a velha gelinha (a cold fowl), a Belinda Dos Dorans, quer dizer, biografada por [John-James-Shem] Doran, nada menos que o biógrafo das Rainhas da Inglaterra (e também dos bobos da corte). A ver-dade é a-vícola. Para entendê-la, há que falar língua de ave, talk straight turkey. Pois falemos franco em turco. Todo o texto nos diz que é noite, hora do sonho, hora do bocejo e quando a ave abre o bico,  (kaíno), nos conta Aristófanes, provoca o caos (caoV). Quando se abre a escuridão da boca aparece o dia e a desordem. Leia-se um dos títulos da Senhora de ALP: Das Duas Mineiras de Abrir a Boca [105, 24]. Somos como o alfaiate [180, 12] que nunca faz a roupa certa, a roupa definitiva. Falemos frango: miguelinos ou luciferinos? É com a palavra MI-KA-EL que o hebraico faz a pergunta: Quem é como Deus? Nossa ânsia pela luz nos aproxima mais de Luci-fer!
          Como o vento que paira sobre as águas no início do Gênesis, temos os meteoros joyceânicos estrepitando por todo o texto. Sem eles nada é possível. Agamenon está com sua esquadra pronta para partir, e não há vento. “Quem escreve entra [no campo de batalha (71) e] nos domínios da morte (59)”, diz o Prof. Donaldo. Há que se sujeitar à morte que tudo metamorfoseia.
          As referências à Bíblia estão por toda parte. O velho e o novo testamento se interpenetram. No mesmo parágrafo lemos: Lucas tem picas; bebem Thara e Avathar pra saciar o vulcão e comem a sempiterna leitoa pra arrasar [130, 4-5]. E logo em seguida: de sua costela extraída veio a mulher dos seus sonhos, sangue mais denso que a água perpetuou comércio além-mar [130, 32-2].
          As metáforas e as metonímias são constantes. Por isto é preciso atribuir a todos os elementos a mesma importância, a gleiche Würtigung. Como nos apontava Freud, a freqüência com que um elemento significante se repete é o que nos dá sua importância.
          A transposição de uma língua para outra, exigida pela tradução, faz lembrar o movimento do Talmude. Se não for blasfêmia, escutem como o próprio nome deste livro sagrado já fala em mudança: Tal-mude! Quando Moisés recebe a Torá no monte Sinai, ele recebe uma parte escrita e outra oral, que não podia se escrever, sendo repetida de geração em geração por 400 anos até ser compilada na mesma língua em que a Torá foi escrita: o hebraico. Esta parte do Talmude, conhecida como Mishná, contem a lei fundamental constituída a partir da Torá. A outra parte do Talmude, mais recente, é a Guemará que contem as opiniões e os ensinamentos dos antigos sábios. E o interessante é que está escrita em aramaico, algumas partes em hebraico, mas a maior parte em aramaico; e depois, por dois mil anos, não se escreve mais em hebraico. Os acréscimos são feitos em aramaico, em iídiche, em ladino, em judeu-árabe.
          O notável, é que deste modo se estabelece uma distância entre a letra e a fala em cujo intervalo se abre um espaço para a interpretação, como observou Lacan em uma conferência de 1978(5). O método usado pelo Talmude chama-se Midrash e consiste, nas palavras de Hugo Schlesinger e Humberto Porto, em “uma análise minuciosas e microscópica do texto, verso por verso, e às vezes letra por letra”(6). A Guemará é o resultado da aplicação deste método com o qual, comentando letra por letra a Mishná, em busca do caminho que leve à Torá, o Rabi, como quem associa, vai dizendo outras coisas. Como no sonho, o texto que se interpreta, o “texto sagrado”, é o texto intermediário. As interpretações são uma maneira de tentar alcançar o texto original, a Torá, o sonho sonhado, a história do mundo joyceano.
          Vejamos o capitulo 6, onde situei uma preocupação legal de Joyce. Temos aqui um Eco [126, 3] de Narciso estruturado sobre 12 questões e suas respostas, das quais não se pode dizer respectivas! – Não há relação sexual entre as mesmas.
          A primeira pergunta tem treze páginas [126, 10 / 139,13] e a resposta uma linha: o nome de Finn Mac Cool! Parece dizer assim: É o fim, fica frio! A segunda pergunta é quase o seu reverso: uma linha, e a resposta não são treze páginas, mas sim treze linhas. O mesmo se repete kierkegaardianamente com diferença.
          As questões e suas respostas representam, em todo o caso, o transcurso da vida pelos doze meses do ano. Aí estão os doze apóstolos e também a lei das 12 tábuas, como bem assinala Donaldo (178), estas que representam o início do direito romano e da legislação ocidental.
          A preocupação legal aparece explicitamente através dos twelve apostrophes feitos pelo jocoso Mic Lacrain [126, 6-7], um Mic a la crem. A tradução por "doze apóstrofos" parece-me duplamente apropriada: primeiro porque o apóstrofo português, sinal diacrítico para indicar supressão de letras e sons, corresponde literalmente ao apostrophe do inglês; em segundo lugar porque a tradução segue ao cânone joyceano da produção de enigmas: como a língua inglesa usa a mesma apostrophe para conotar tanto o apóstrofo ortográfico, como a apóstrofe da retórica, a tradução, ao não considerar a conotação retórica, chama por sua ausência a atenção para sua presença ao longo de todo o texto. De certo modo pode-se dizer que todo o Finnegans Wake consiste em um ensartado de apóstrofes: assistimos a todo momento interrupções no discurso através das quais surgem novos personagens ou suas novas facetas, bem como invectivas violentas ou mordazes.
          O sonho nos oferece um caudaloso panaroma [143, 3]. Suas águas agitadas favorecem as construções anagramáticas. O que é homem por dentro, por fora se mostra anjo [141, 10-11]. O que para Freud são os ‘restos diurnos’ provocadores do sonho, para Joyce será metamnísia [158, 10], o que está acima da amnésia, acima da perda da memória. Aí está isto que nos estrutura como seres de fala. Eu falo da falta. Buscamos edipicamente o que nos falta.
          Donaldo descobre isto para nós em sua tradução dos we grisly old Sycos ("nós velhuscos Sycos gurisalhos")[115, 21]: ele detecta aí os aristofânicos genitais femininos (67) aos cuidados de Jung e Freud [115, 22-3 e 123, 20].  A distinção entre os cuidadores não importa neste momento, assim como não importa a posição de HCE: ali se é espe[ta]cularmente tanto Édipo quanto Laio (68), pois as relações são sempre incestuosas no quarteto alexandrino. 
          Acompanhemos de perto os detalhes da tradução de grisly por ‘gurisalhos’: ainda que grisly seja uma variação de grizzly (grisalho), grisly conota em primeiro lugar o horrível, o medonho, o pavoroso. O teratológico aristotélico resulta justamente da visão dos genitais femininos, estes que nos sonhos jamais aparecem; em seu lugar, os figos de Aristófanes. Annuska Lutetiavith Pufflovah [207, 8] jamais aparece nua! As bundas e os peitinhos podem aparecer, mas a terceira graça jamais. Em seu lugar as axorcas [207, 4]. E o interessante é que isto de certo modo está para todos we grisly, nós os ‘gurisalhos’; e mais, a expressão também dignifica o homem com a Ordem do Figo, um tipo de figo tardio que não amadurece, registrado pelo grego – permitam-me o chiste – como ólynthos. E isto por quê? Por efeito do Édipo? Por efeito do Duplexo de Tibério [123,30] que rege a vida no dublimundo [116, 3]? De qualquer modo, quando chegamos a ter uma certa compreensão da vida sabemos que nunca estamos prontos.
          Mas a verdade das relações, como o documento original[123, 32], é impublicável. É preciso voltar contra a luz esse novo livro de Morses [123, 34] e ler os estenogramas. Aí, pelas furidas no papel [124, 3], poder-se-á entender o que está em jogo: estamos apegados a ca Fé, a ge Léia, a trip Ada, amor Angu, a ó vós frescos... [124, 12-14]. Shi! Ovos frescos, morango, tripada  e café, que angu que é! As palavras são como Osíris espedaçado. Isis é a arquiteta que com seus arcos busca juntar o disjunto. 
          E para terminar, Mac Cool; fiquem frios: Shem, o Bruno [187, 24] pecador, vai para a cama com todas as suas posses - os metamnísicos restos diurnos - trauteando uma cantata per una donna mobile. Sua ambição é fazer existir a relação sexual. No sonho, Anna parece envolvidíssima com seu amante. Como a aranha diz para a mosca, ela o chama para mais perto [144, 13] e sussurra-lhe ao ouvido: meu foleiro (haja fôlego!), meu encanador, ai que dor (haja cano!), meu coveiro (cave a cova!), meu bombeiro (bombe, bombe!)! Ah! Agora estou ótima, muchíssimas gracias! E a bela mostra então toda sua preocupação com o outro: Ho!  oh, cuidado, não vás perder teu parco pinto. Miaumiau. E, para não deixar dúvida do que se trata, a gata arre-mata: Tou terrivelmente sen ti da, juro que tao! [144, 34-6]. Enquanto ela parece estar se dizendo sen-ti-da, ela está efetivamente ‘sem te dar’. Em outro momento do texto aparece a seguinte variante: minha ana cumi na moyta [201, 30], por graça de infalíveis punhetadas de bispo [201, 33]. Estas situações são típicas e se repetem ao longo de todo o livro: o ato sexual que parece um intercurso revela-se sempre uma homenagem a Onan [passim]. Compete ao leitor fazer disto, com sua leitura, um ato criativo e gerador de vida porque a resposta só pode ser uma: “ajuda-te a ti mesmo” (239) como diz Donaldo; ou então, na linguagem de Joyce: - Sai dessa, David [172, 25-6]. 

 
Notas:
1. JOYCE, James, Finnicius Revém. Tradução de Donaldo Schüler. São Paulo, Ateliê Editorial, 2001, 312 páginas.
2. Os números entre colchetes indicam o número da página do texto original e a linha da citação.
3. Os números entre parênteses (em tamanho normal) indicam as palavras de Donaldo Schüler nas páginas da edição brasileira.
4. Se examinarmos a tradução da Ed. Standard Brasileira (vol. V., p. 548), encontraremos um texto ligeiramente diferente: ele começa a frase, por exemplo, por uma negativa, quando não é o caso. Freud diz claramente que se trata de atribuir uma gleiche Würdigung, a ‘mesma importância’ a todas as sprachlichen Ausdrucks. Ainda que sprachlichen Ausdrucks possam ser traduzidas por ‘palavras’, elas expressam melhor isto que o inglês chama de idioms e que nós conhecemos como ‘expressões idiomáticas, as expressões próprias de uma língua as quais, levadas ao seu caráter particular formarão isto que Lacan irá chamar de Lalangue e que traduzimos com ‘alíngua’.
5.  LACAN, J., “Transmision y Talmud” [1978]. In Lacan Oral. Buenos Aires, Xavier Bóveda, 1983.
6.  SCHLESINGER, H. e PORTO, H., Dicionário enciclopédico das religiões. Petrópolis, Vozes, 2 Vols., 1995, p. 1754.