Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

Notas Psicanalíticas

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O ATO PSICANALÍTICO É LIRICO

Luiz-Olyntho Telles da Silva

O ato  toma o lugar de um dizer, muda o sujeito.
(JACQUES LACAN, O Ato Analítico)





Este texto foi escrito inicialmente para o aniversário de uma instituição psicanalítica amiga. Vale dizer que foi escrita para um ato de comemoração de outro ato, qual seja o de sua fundação, ato esse – se vale minha experiência institucional – registrado em ata. E a manutenção de uma instituição em prol do desenvolvimento do discurso psicanalítico nunca será sem uma série de atos.

Justifico assim este texto – o qual toma por base uma cadeia significante –, e adianto que o esperado de um ato, mormente do analítico, é que ele abra para um novo mundo.

Quando lemos os exegetas, em geral guiados por São João, vemos destacada a primazia do verbo. E estou de acordo, sem a palavra não há consciência do ser no mundo. Contudo, os dois primeiros versículos do Gênese dizem da criação do céu, da terra e das águas. É só no terceiro versículo que ouviremos o fiat, o fiat lux sobre o qual o comentarista diz que essas palavras se confundem com a ação. Quero dizer com isso que o ato só pode agir sobre o que já está. E, quanto se trata dos inícios, o Mefistófeles, de Goethe, diz que ele depende do ato. Am Anfang war die Tat são suas palavras. Para a realização do ato analítico, se me permitem a trasliteração, as palavras precisam se ditas com muito tato.

Lacan argumenta a inclusão do conceito de ato na psicanálise com o ato sexual e o ato médico: no primeiro está implícita a geração de mais vida e, no segundo, o requerimento da força para sua efetividade. Pois não descuidemos da extensão metafórica das palavras do Mestre. Quando Copérnico tira a terra do centro do universo, abre-se um novo mundo; a declaração darwiniana de nossa herança animal abre outro, enquanto a revelação da sexualidade infantil, por Freud, virou o mundo de cabeça para baixo, e a do inconsciente mostrou algo que até Shakespeare por certo classificaria como admirável. Estes fatos, por muitos considerados como chocantes, mas que, fora de dúvida, proporcionaram novas visões antropológicas, foram estabelecidos por atos.

Quando a Sra. S. Hommel, tornada analista no divã de Lacan, queixando-se da perseguição aos judeus pela Gestapo, sofrida em sua infância, o analista levanta rapidamente de sua poltrona e lhe faz um carinho no rosto, a analisante percebe aí uma outra leitura da palavra perseguidora transformada em significante: agora ela é apenas um geste à peau. Percebam a importância do tato, entendido aqui – antes de tudo – como cuidado. Em um de seus Seminários, Lacan aponta para a diferença entre olhar para o dedo do mestre e olhar para onde ele aponta. Quer dizer, uma coisa é o objeto e outra sua metáfora.

Lacan deixa muito claro, em seu Seminário de 1967, que a introdução do ato, no nível da psicanálise, por envolver profundamente o sujeito, renova nossa compreensão do inconsciente. Então, quando compara o ato analítico ao sexual, abre-se aí toda uma infindável gama de possibilidades (não por acaso advoga a não existência de a relação sexual). Lembrei, nesse propósito, das queixas do Cavalheiro Tristram Shandy – relatadas por Laurence Sterne –, quanto a atenção dada por seus pais ao ato em que foi gerado. Ressente-se o Cavalheiro de que eles não houvessem levado em conta o quanto ele dependia do que então faziam. Não estava em causa apenas o Ser racional, contava ele, mas também, possivelmente, a boa formação e a temperatura de seu corpo, quem sabe até o seu gênio e a própria disposição de seu espírito. Estas foram as deduções que lhe ocorreram ao saber por seu tio, que era muito próximo de seu pai e ouviu dele, em sentido desabafo, o que ocorrera na ocasião. ¬– Imagine, dissera ele, que em meio ao conúbio, ela inventou de perguntar-me se eu não havia esquecido de dar corda ao relógio. E em seguida, cuidando de moderar a voz, exclamou: Houve jamais mulher, desde a criação do mundo, que interrompesse o homem com pergunta assim tão tola? E ele faz essa queixa sem deixar de ponderar que essa senhora bem conhecia a religiosa pontualidade com a qual seu marido dava corda no relógio da sala. Não estou certo de que será preciso ressaltar que, neste momento, não estamos tão interessados no valor metafórico dessa falta de corda, mas sim na efetividade do ato. Se ele sempre tem efeitos, o que será preciso para gerar seus melhores efeitos?