JACQUES LACAN
 

LÓGICA DO FANTASMA
1966 – 1967

COLEÇÃO
O SEMINÁRIO
LIVRO 14

Estabelecimento
Isagoge e Notas
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva

Para uso interno do
RECORTE DE PSICANÁLISE


 
14 de dezembro de 1966
 
 

* 4 *
 

INTRODUÇÃO

      Falemos de pequenas novidades. Uma coisa curiosa: a maneira na qual este livro[47] é acolhido  em uma certa zona, aquela que vocês representam.
     Vou partir de uma pergunta idiota que me foi colocada. Não é isto que se poderia crer, quero dizer, não foi de uma maneira que me desgostasse, eu adoro os idiotas e as idiotas.  Isto que eu chamo idiota é natural, um idiotismo é uma coisa natural, simples e amiúde ligado à situação. A pessoa não havia lido meu livro e me perguntava: “Qual é o laço entre vossos Escritos?”
     Uma pergunta que não me teria ocorrido por mim mesmo. Uma pergunta que não poderia ter me ocorrido. Pergunta interessante à qual faço todos os esforços para responder como me foi colocada. Era para mim fonte de uma verdadeira interrogação e, para ir rápido, eu respondi nestes termos: que o que me parecia fazer laço, não a meu ensino, senão a meus Escritos, que qualquer um que lhes abra lhe tocará algo que é da ordem do que se chama identidade, cada um tem o direito de deixar-se levar pelo impulso de aplicar a si mesmo.
     Eu quero dizer, desde o estádio do espelho até às últimas notações do que pude escrever sob a rubrica do sujeito.
     Este ano, eu acreditei dever, falando da lógica do fantasma, partir desta observação que para os que estão familiarizados não tem nada de novo: que o significante não saberia significar-se a si mesmo. O que não é em absoluto a mesma coisa que esta questão sobre a ordem da identidade para o sujeito, que poderia ser-lhe aplicável a si mesmo.
     Mas enfim, para dizer as coisas de modo que elas ressoem, o ponto de partida que deixa um laço até o término desta volta é algo profundamente discutido ao largo de todos estes Escritos e que se expressa nesta fórmula que aparece sempre e que se mantém, devo dizer, com uma desagradável atitude e que se expressa assim “moi je suis moi”, “eu sou eu”. Eu penso que são poucos entre vocês os que não tenham lutado para colocar esta convicção em questão, mesmo quando ela tenha apenas arranhado seus papéis, não resta disto senão que ela é sempre muito perigosa. Com efeito, ela se engaja em seguida, na via onde se desliza e naquela que eu assinalei de novo este ano que se coloca do modo mais natural, os mesmos que estabeleceram esta certeza tão fortemente não duvidam em cortar também ligeiramente o que não é deles. Não é privilégio dos bebês dizer: não sou eu.
     Ao mesmo tempo, toda uma teoria da gênese do mundo para cada um que se chama psicólogo, que os primeiros passos da experiência farão para aquele que a vive, o ser infans, em seguida infantil, que ele fará a distinção, diz o professor de psicologia, entre o eu [moi] e o não-eu [non-moi]; uma vez engajada nesta via, está bem claro que a pergunta não saberia avançar um passo, posto que se compromete nesta oposição como se ela fosse considerada como partida entre o eu e o não-eu com o único limite de uma negação comportando a mais o terceiro excluído, ele está totalmente fora do campo, o que é a única questão importante, a saber: se eu, eu sou eu, “si moi je suis moi”.
     É certo que ao abrir meu livro, todo leitor será enodado neste laço, e que isto não é portanto uma razão para que ele se sustenha aí, pois o que está enodado por este laço lhe dá suficiente ocasião para ocupar-se de outra coisa, coisas que se esclarecem ao serem enodadas neste laço e, portanto, deslizarem-se ainda fora  de seu campo, é o que é concebível nisto: que não é sobre o terreno da própria identificação que a pergunta pode ser verdadeiramente resolvida. É justamente voltar a trazer, não somente esta pergunta, senão tudo o que ela interessa, em particular a questão do inconsciente que apresenta, é preciso dizer, dificuldades que saltam mais imediatamente aos olhos. Quanto a saber a que convém identificá-lo, é sobre esta questão da identificação e não somente sobre o sujeito, que nós empregamos a referência, a estrutura e que não é preciso partir de algo externo, é preciso situar no campo da identificação, a saber, sublinho, que nenhum significante saberia significar-se a si mesmo.
 
 

O GRUPO DE KLEIN
E A ESTRUTURA DA METÁFORA

     Posto que se trata de estrutura, para explicar-lhes certos elementos dos quais não é certamente minha falta se isto não está a vosso alcance, para que isto seja considerado como conhecido quando eu lhes falo da primeira verdade, eu lhes faço a escolha do que se chama um grupo.
     Trata-se do grupo de Klein na medida em que é um grupo definido por um certo número de operações, não há mais de três o que resulta delas se define por uma série de igualdades muito simples entre duas delas e um resultado que pode ser obtido de outro modo, quer dizer por um dos outros, um pelo outro, os dois por exemplo.

     Simbolizado pelas redes, a linha pontilhada corresponde a uma só e mesma operação, do mesmo modo a linha cheia.
     Cada uma destas operações que posso deixar em uma completa indeterminação, cada uma delas se encontra em quatro lugares diferentes na rede. A relação entre estas três operações que são a b c, todas elas são operações involutivas. A mais simples para representar este tipo de operação é, por exemplo, a negação. Vocês negam que haveria aí alguma coisa, vocês colocam o signo da negação sobre alguma coisa, quer se trate de um predicado ou de uma preposição; não é verdade que vocês refaçam uma negação sobre o que acabam de obter. O importante é colocar que há um uso da negação onde pode ser admitido isto: não como se lhes ensina, que duas negações valem uma afirmação, nós não sabemos do que partimos; mas, do que quer que seja que tenhamos partido, esta classe de operação da qual lhes dou a indicação, o conjunto tem por resultado zero.

aa = 0
bb = 0
cc = 0

     É como se não se houvesse feito nada, isto é o que quero dizer por a operação é involutiva. Isto quer dizer que elas não mudam o estado da coisa dada, uma vez que por um lado se obtém sempre 0, ou seja, que ao fazer se suceder as letras, a operação involutiva se repete: cada uma é equivalente a zero. Zero em relação ao que nós tínhamos antes. Se nós tínhamos 1 = aa, haverá sempre 1.
     Isto vale a pena ser sublinhado: pode haver aí outras operações além da negação as quais tenham esse resultado; suponham que se trate da mudança de signo, isto não é igual à negação.

ab = c
ac = b
bc = a

     No início terei menos 1 [- 1], tendo feito funcionar o –1, estas duas operações serão involutivas e tendentes profundamente a zero como resultado, basta considerar o diagrama.
     Como certas exigências intuitivas que podem ser as vossas, que gostariam de por alguma coisa nos dentes, eu lhes proponho que se reportem a um artigo aparecido na revista Tempos Modernos, sobre a estrutura na matemática, que poderia ser mais extenso mas que, sob a curta superfície escolhida – vocês mastigam as coisas com um extremo cuidado –, 24 páginas por onde se passa passo a passo. Exercício, contudo, útil para aqueles que amam as distâncias, exercício que pode lhes suavizar esse grupo de Klein.
     Se eu o apresento ele irá nos prestar alguns serviços se nós partirmos da estrutura; vocês se lembrarão de certos passos ao redor dos quais eu o fiz voltar, o suficiente para que se lhes possa voltar ao pensamento que o funcionamento de um grupo suficientemente estruturado, para funcionar, possa se contentar com quatro elementos, os quais estão representados aqui sobre a rede que os suporta pelos pontos vértices onde se reencontram as arestas desta figura que vocês vêem inscrita.

     Observem que esta figura não tem nenhuma diferença com aquela que lhes mostro aqui rapidamente e que apresenta 4 vértices, cada um tendo a propriedade de estar ligado aos 3 outros, e do ponto de vista da estrutura é a mesma. Nós não teremos mais que juntar os vértices de dois em dois para ver que é a mesma estrutura. O ponto médio desta estrutura não tem nenhum privilégio, a vantagem de marcá-lo de outra maneira é que não há privilégio. A outra figura tem ainda outra vantagem, que é a de fazer-lhe tocar com os dedos que há aí alguma coisa, entre outras, como a noção de relação proporcional para cobri-la inteiramente. Alguma coisa funciona, de outras estruturas, segundo a lei do grupo de Klein; trata-se para nós de saber se a função que eu introduzi sob os termos como aquela da função da metáfora é tal como eu a representei pela estrutura:

     S é um significante na medida em que se coloca em uma certa posição que é a posição metafórica ou de substituição em relação a um outro significante, vindo portanto substituir S’, algo se produz na medida em que o liame S’ está conservado como possível recalque, vendo resultar este efeito em uma nova significação. Dito de outra maneira: um efeito de significado (s) que constitui o quarto elemento heterogêneo. Dois significantes estão em causa, duas posições de um destes significantes e um elemento heterogêneo, o quarto elemento, s, o significado, que é resultado da metáfora (que eu escrevo assim como S na medida em que veio substituir) S’ torna-se fator de um S parêntese que eu chamo o efeito metafórico de significação! É esta fórmula que permite dar a estrutura do recalque. Trata-se de uma substituição significante na origem, na qual o reprimido não se sustém como escrito mais que ao nível do seu retorno, vindo S’, que o designa, enlaçado a ele na cadeia com o que constituiu seu substituto. O S, na medida em que ressurge para permitir o retorno do S’ recalcado, é com o que temos que nos haver, e que representa o sujeito do inconsciente, a respeito de alguma outra coisa que é o sintoma.
     Vocês sabem, dou importância para esta estrutura porque ela é fundamental para explicar a estrutura do inconsciente: trata-se de que no momento considerado como primeiro, original, do que é o recalque, trata-se digo eu, pois que é o modo que me é próprio de apresentá-lo, de um efeito de substituição significante na origem. Origem lógica e não de outra coisa. O que é substituído tem um efeito pendente da língua que pode permitir que nos expressemos de uma maneira viva: o substituto tem por efeito substituir isso ao qual se substitui.
     Encontramos que, pelo fato destas substituições na posição que a imaginamos muito sem razão, ser apagada é simplesmente ser substituída, a posição que eu vos traduzo: a Unterdruck de Freud, o que é então o recalque?
     Tão paradoxal como aparece o recalcado ao nível desta teoria, ele não se suporta, não está escrito senão ao nível do seu retorno.
     É enquanto que o significante extraído da fórmula da metáfora vem ligado na cadeia com o que constitui o substituto que nós tocamos com a ponto do dedo o recalcado. Dito de outro modo: o representante da representação primeira enquanto que ela está ligada ao fato primeiro, lógico, do recalcado.
     Trata-se de alguma coisa na qual vocês sentem de fato imediatamente a relação com a forma não idêntica, senão paralela – que o significante é o que representa um sujeito para um outro significante – deve aparecer-lhes assim a metáfora do funcionamento do inconsciente.
     O S na medida em que ressurge para permitir o retorno do S’ recalcado, esse S tem como tarefa representar o sujeito do inconsciente ao nível de alguma outra coisa que está lá, isso com o que vamos nos haver e que iremos determinar o efeito como efeito de significação e que se chama: o sintoma. É com isso que temos que nos haver, e para tanto recordar que esta fórmula de quatro termos é célula, o núcleo onde nos aparece a dificuldade própria de estabelecer do sujeito uma lógica primordial como tal, uma vez que isto vem juntar-se ao que outros tiveram para outras disciplinas, poder chegar a um ponto de rigor superior, aquele da lógica matemática, que se expressa nisto: agora não se pode mais sustentar que haja um universo do discurso. Está claro que no grupo de Klein nada implica esta falha do universo do discurso, porém nada implica tampouco que esta falha não esteja aí, pois o próprio desta falha do universo do discurso, é que se ela está manifestada em certos pontos de paradoxo que não são sempre tão paradoxais como isso, eu disse, o pretenso paradoxo de Russel não é tal; o universo não se fecha. Nada indica por antecipação uma estrutura tão fundamental na ordem das referências estruturantes que o grupo de Klein não nos permite tomar de uma maneira apropriada, nossas operações não nos permitem suportar de alguma maneira, isto que se trata de suportar, quer dizer nesta oportunidade, é a minha visão de hoje: a relação que nós podemos atribuir à nossa exigência de dar seu estatuto estrutural ao inconsciente com o cógito cartesiano.
 

O UNIVERSO DO DISCURSO
E A INTERPRETAÇÃO

     O cógito cartesiano, não há nada a dizer senão sublinhar que eu não o escolhi ao acaso: é porque ele se apresenta como uma aporia, uma contradição radical ao estatuto do inconsciente que tantos debates tem desde então retornado ao redor do estatuto pretendido como fundamental da consciência de si. Mas se descobrirmos, depois de tudo, que este cógito se apresenta como sendo o melhor em relação ao pretenso estatuto do inconsciente, teríamos aí algo a ganhar, como podemos presumir, que este não é inverossímil como se poderia mesmo conceber. Não é uma formulação, mas uma descoberta do que é do inconsciente antes do advento, antes da inauguração do sujeito do inconsciente na medida em que este sujeito é coextensivo ao advento da ciência.
     Lembrem o ponto do qual eu lhes assinalei o interesse: este grafo ao qual vocês podem se reportar no meu livro, tal como ele está desenvolvido ao nível do artigo “A subversão do sujeito e a dialética do desejo”.
     O que é que quer dizer o que se encontra ao nível da cadeia superior, e à esquerda deste grafo? Temos a marca ou o índice: . Eu não trouxe tantos comentários para que hoje eu não tenha a oportunidade de fazer notar que se trata deste lugar no grafo, S do significante na medida em que ele seria o equivalente da presença do que eu chamei o um de mais [l’un en trop], que é também o que falta na cadeia significante, portanto, mais precisamente, não há aí universo do discurso. Isto quer dizer que ao nível do significante, este um de mais [l’un en trop], que é ao mesmo tempo o significante da falta, que é o de que se trata e que deve ser mantido como essencial, concernente à função da estrutura, na medida em que ela nos interessa, bem entendido, se nós seguimos o traço onde até o presente lhes tenho conduzido, a que o inconsciente está estruturado como uma linguagem.
     Em um certo lugar, me contaram que alguém (alguém que não me desagradaria que viesse aqui) começa seus cursos sobre o inconsciente dizendo: “Se há alguém aqui para quem o inconsciente está estruturado como uma linguagem, pode sair imediatamente!”
     Eu vou lhes dizer como estas coisas são comentadas ao nível dos bebês. Contaram-me uma delas: discute-se disto, daquilo, dos que não estão de acordo, e há um que diz: “Lá, como alhures, existem os Afreud”.
     Antes da minha interwiew no Radio, uma voz anônima, a quem se lhe perguntou se lhe fazia falta ler Freud, respondeu: “nenhuma necessidade, existe a técnica!” Não há necessidade de se ocupar com Freud, há lugares onde, afreud ou não, não se ocupam muito de Freud.
     Este significante que conserva o um de mais [l’un en trop] da cadeia significante como tal, enquanto que escrita, é para nós o lugar-tenente do universo do discurso, pois que é bem disto que se trata: trata-se do que é desde o começo deste ano o fio condutor na medida em que nós tratamos a linguagem e a ordem que ela nos propõe como estrutura por meio da escrita, que nós podemos pôr em valor o que resulta aí da demonstração no plano escrito, da não existência deste universo do discurso. Se a lógica não tivesse tomado as vias que tomou na lógica moderna tratando os problemas lógicos de modo a purificá-los até o último limite do elemento intuitivo que pôde, durante séculos, tornar tão satisfatória a lógica de Aristóteles que deste elemento intuitivo retinha uma grande parte, tornando-a tão sedutora que para o próprio Kant não havia nada a agregar a esta lógica de Aristóteles, enquanto que lhe bastou deixar passar alguns anos para ver que precisava somente tentar tratar estes problemas por esta transformação que resultava do uso da escritura, tanto ela havia se tornado dominante [répandue], e nos tornado expertos [rompu à] em suas fórmulas por meio da álgebra que se coloca como pivô na mudança de sentido na estrutura, quer dizer, permitindo-nos colocar os problemas da lógica de outra maneira atinente ao que, longe de diminuir seu valor, é precisamente o que lhe dá todo seu valor no atinente ao que nela é pura estrutura, o que quer dizer: estrutura, efeito de linguagem.
     É disto então que se trata: que quer dizer este S, com este A entre parêntese, senão que, no nível em que nós estamos, a designação por um significante de que é deste um de mais.
     Mas então, vocês me dirão, ou eu o espero, reterão o dito, seguramente posto que sempre estamos sobre o fio, sobre o trinchante da identificação, do mesmo modo que naturalmente a boca da pessoa ingênua que vocês começam a doutrinar: eu não sou eu [moi je ne suis pas moi], então, diz ela: quem sou eu [moi]? Este invisível renascimento do olhar da identidade do sujeito, podemos dizer, é o que faz funcionar este significante do um de mais. Nós não poderemos fazer como se o obstáculo fosse visível e como se nós puséssemos na circulação da cadeia o que não pode aí entrar, a saber, o catálogo. Catálogo dos catálogos que não se contém a si mesmo. Por conseqüência, desvalorizante.
     Não é disso que se trata pois, na cadeia significante que podemos considerar como a série de letras que existem em francês, é pelo que a cada instante uma qualquer destas letras possa ter lugar entre todas as outras que é preciso que ela aí se barre, que esta barra retorne e verticalmente marque cada uma destas letras que nós vamos inserir na cadeia, a função do um de mais entre os significantes, mas estes significantes de mais a evocam como tal por pouco que a ponhamos fora do parêntese em que funciona a barra; a indicação significante da função do um de mais como tal é possível, não somente é possível, senão que é o que irá manifestar-se como possibilidade de uma intervenção direta da função do sujeito, na medida que o significante é o que representa um sujeito para outro significante.
     Tudo o que fazemos que se pareça a este  não responde a nada menos que à função da interpretação. Irá julgar conforme ao sistema da metáfora, pela intervenção na cadeia deste significante que lhe é imanente, como um de mais, um de mais suscetível de produzir aí este efeito de metáfora que estará aqui.
     É por um efeito de significado, como parece indicar a metáfora, que opera a interpretação? Seguramente, a fórmula por um efeito de significação do qual este efeito é o de precisar o nível da estrutura lógica, no sentido técnico do termo, quer dizer que a continuação deste discurso que lhes aporto lhes precisará as razões pelas quais este efeito de significação se precisa, se especifica e irá precisar a interpretação como um efeito de verdade. Mas, do mesmo modo, isto não é mais que um ponto, uma guia sobre a rota, depois da qual se abre um parêntese para dar-lhes todos os motivos que me permitem precisar assim o efeito da interpretação.
     Entendam bem o que eu digo: efeito de verdade, que não saberia de modo nenhum prejulgar a verdade da interpretação; quero dizer se o índice verdadeiro ou falso pode ser ou não a verdade do significante da própria interpretação.
     Este significante não era até aqui senão um significante a mais [en plus], vejam só[49] , de mais [en trop]. Significante de alguma falta, como falta no universo do discurso.
 


O COGITO CARTESIANO E A ESCRITURA

     Eu digo que o efeito é efeito de verdade. Se eu lhes chamei a atenção para a ordem da implicação enquanto implicação material, quer dizer enquanto que existe o que nós chamamos a conseqüência na cadeia significante, o que não quer dizer nada. Eu lhes farei sublinhar que não há nenhum obstáculo para que isto seja cotado do índice de verdade, nisto que uma premissa seja falsa contanto que uma conclusão seja verdadeira, suspendam vosso espírito sobre o que eu chamei efeito de verdade afim de que nós possamos dizer mais sobre o que há da função da interpretação. Agora seremos levados simplesmente a chamar, a produzir isto que concerne ao cógito, o cógito cartesiano no sentido que vocês sabem. É simples, posto que ainda entre as pessoas que consagram à obra de Descartes suas existências, resta sobre o que há do modo de interpretá-lo, de comentá-lo, grandes diferenças.
     Faço eu alguma coisa que consistiria, a mim, um não especialista, em imiscuir-me neste debate cartesiano? Seguramente eu tenho tanto direito como todo o mundo. Eu me refiro ao Discours de la Méthode, onde as Méditations também são dirigidas a mim como a todos os demais.
     Se se trata de interrogar-me sobre a função do Ego no Cogito, Ego-Sum, então me é permitido, como a todo o mundo, recuperar na tradução latina que Descartes dá do Discurso do Método em 1644, que nesta tradução latina aparece, se minhas notas são boas, aparece como tradução do “eu penso logo eu sou”, ergo-sum, aparece ergo-sum, save existo.
     Na segunda meditação ele compara ao ponto de Arquimédes este ponto do qual se pode realmente esperar...

ego sum – ego existe – ce debito ego sum

o que para o psicanalista tem outra ressonância.
     Terreno demasiadamente escorregadio para que, com os costumes atuais, se o aplique como Robbe-Grillet que fala da neurose obsessiva, para que eu vá longe neste sentido.
     De outro modo, sublinho que o que se trata para nós é de uma certa escolha. Aquela que irei nesta oportunidade deixar suspensa: que tudo o que é lógico pode ficar ao redor do cogito ego sum, a saber, da ordem de implicação da qual se trata, se é somente da implicação material, segundo a fórmula que eu escrevi no quadro. É unicamente na medida onde da implicação [então] a Segunda proposição seria falsa, que o laço de implicação entre os dois termos poderia ser rejeitado: dito de outro modo: o importante é saber se “eu sou” é verdadeiro, não haveria aí nenhum inconveniente que o “eu penso” seja falso. Eu disse para começar, que a fórmula seja admissível enquanto implicação. “Eu penso”, sou eu [moi] quem o diz. Pode ser que eu acredite que eu pense e que eu não pense. Isso acontece freqüentemente todos os dias. Na implicação pura e simples, que chamamos de implicação material, não se exige mais que uma coisa: que a conclusão seja verdadeira.
     Em outros termos, a lógica comporta referências às funções de verdade e, utilizando as tábuas em um certa ordem de matriz, não pode definir certa operação senão para ficar coerente com ela mesma; não pode definir certa operação com a implicação, senão que ao admitir-lhes como função que seria melhor nomeada como “conseqüência”, conseqüência que quer dizer isto: que à amplitude do campo em uma cadeia significante podemos colocar a conotação de verdade, podemos colocá-la sobre a falsidade e em seguida uma verdade, não o inverso. Isto nos deixa longe da ordem do que há a dizer aí do cógito cartesiano como tal em sua ordem própria que, sem dúvida, implica, interessa, à constituição do sujeito como tal, quer dizer, complica isto que há aí da escritura enquanto que regulando o funcionamento da operação lógica, lhe deve nisto: que esta escritura não faz mais que representar um funcionamento mais primordial de algo que a este título merece para nós ser colocado em função de escritura, que é daí que depende o estatuto do sujeito e não sua intuição que está justificada por algo profundamente escondido, a saber: o que quer buscando esta certeza sobre este terreno que é aquele de limpar de tudo o que está posto à sua entrada concernente à função do saber e, depois de tudo, que é este cogito? Eu toco minhas ovelhas, é uma parte de meu trabalho; não é o mesmo quando estou totalmente só, nem mesmo quando estou em minha poltrona de analista.
     Cogito – eu coloco junto, cogito – tudo isto se revolve no final das contas, se não houvesse este desejo de Descartes que orienta de modo tão decisivo estas cogitações, o cogito, poderíamos reduzi-lo por eu [je] “desordenado”[50], por que cogito? Isso tem também seu sentido em latim. Isto quer dizer mesmo: limpar[51]. O que para nós, analistas, tem pequenas ressonâncias. Ergo sum, teria talvez outro estilo, e de outras conseqüências não sabemos. Limpar, no sentido de desembaraçar-se, desembaraçava-se talvez Deus. Enquanto que o cógito é outra coisa, mas além disto, cogito é: escrito, se nós nos temos apercebido que cogito isso poderia se escrever.
      “Cogito ergo sum”, é aí que podemos retomar a intuição se conseguir compreender o conteúdo que se destaca da estrutura do aparelho da linguagem. Não esqueçamos, concernentes a certas funções em conjunto, talvez, eu digo talvez, são aquelas onde o sujeito não se acha simplesmente em posição de ser agente, mas em posição de sujeito, portanto o sujeito é mais que interessado, porém forçosamente determinado pelo ato do qual se trata.
     As línguas escritas tinham um outro registro: a diátese, que chamamos a diátese média é por isso que, concernindo ao que se chama a linguagem porquanto determina algo onde o sujeito se constitui como ser falante, dizemos: “locnor”. Não é de ontem que eu tento explicar estas coisas aos que vêm me escutar, eles se lembram do tempo quando eu lhes explicava a diferença entre aquele que te seguiria e aquele que te seguirá. Se estes que se reconhecem nesta diferença de tempo, relativa, parece que não há voz média em francês: seguir, quer dizer : “ sacnor ”.
     Isto que se poderia dizer de um pensamento que seria uma, uma verdade, como isso se diria em latim pela voz média? Mediatum.
     Talvez seja na ocasião disto que faz o analista, quando ele interpreta, que eu serei levado a lhes dizer, me é necessário todavia avançar como o fazemos, passo a passo, para lhes dar sobre esta voz uma pequena indicação. Eu lhes envio a alguma coisa, ao artigo de Benveniste, em sua recente compilação, na qual lemos no jornal de psicologia sobre a voz ativa e a voz média. Em sânscrito se diz: eu sacrifico – de duas maneiras. Emprega-se a voz ativa quando, para o verbo sacrificar? É quando o sacerdote faz o sacrifício à Brahma para um cliente. Há aí uma nuança. A voz média [é] quando ele oficia em seu nome. É um pouco complicado que eu avance nisto, isso não faz intervir somente a falha que é preciso pôr no sujeito da enunciação, e o enunciado é o mais difícil porque há outro que com o sacrifício cai na armadilha. Não é o mesmo tomá-lo em seu nome ou para o cliente que necessita pagar uma promessa à divindade e para isto procura um técnico.
     Eu vou de adivinhação em adivinhação.
     Onde estão as analogias na relação dita da situação analítica? Quem é que oficia e para quem? São questões que se pode colocar. Eu não as coloco senão para fazer-lhes sentir isto: há uma função da decadência da palavra no interior da técnica analítica; quero dizer que se trata de um artifício técnico que submete esta palavra às simples leis da conseqüência. 
     Que não se confie em nada, isso deve simplesmente enfiar-se, não é assim natural, nós o sabemos por experiência, as pessoas não aprendem este métier de uma hora para outra, então é preciso de fato que elas desejem[52] oficiá-lo. Isto se parece ao ofício que se demanda fazer ao Brahmane quando ele tem um pouco desse mister debitando suas pequenas preces e pensando cogito ergo sum, quem sum neste sum aí?
     Isto é de natureza a nos fazer entender qualquer que seja o justo lugar de nossas reflexões no que concerne ao nosso passo cartesiano que não se trata de reduzir, eu lhe guardo seu lugar assaz histórico, trata-se de uma utilização que resta pertinente alhures, a saber, é a partir daí, do momento onde se trata o pensamento. O pensamento tinha seu passado, seus títulos de nobreza, ninguém havia sonhado em torcer sua relação com o mundo ao redor do eu [moi]. É o resgate[53], o preço que se pagou por haver jogado o pensamento no lixo, uma vez que o cogito, depois de tudo, em Descartes, é o resto[54]. Ele joga no cesto o que tem a examinar em seu cogito; vemos a relação que tudo isto teve a ver no que acabo de lhes avançar: a partir da fórmula escrita da nova lógica anunciamos um certo número de coisas que tem seu interesse. Por exemplo, isto: se vocês querem negar a e b, eu ponho a barra da negação e, por convenção, é isto que constitui a negação.
     A vantagem deste procedimento escrito é bem conhecido: é preciso que isso funcione como um molinete, sem necessidade de refletir. Isso consiste em escrever:  não a  (   )  não b ): procurem em Boulle  a que isso corresponde ou em M. Morgan. Eu vou assim mesmo fazer-lhes imaginar, pois eu sei que algumas pessoas vão ficar chateadas se eu não o fizesse. Eu lastimo, pois estas pessoas vão ficar satisfeitas e acreditarão que compreenderam alguma coisa, mas neste momento elas estarão definitivamente metidas no erro. 

     A diferença simétrica, que chamamos o complemento neste conjunto, eu interpreto ao nível dos conjuntos da função negação. A negação sendo o que não é a e b, os dois outros indiferentemente cumprem esta função. Nós examinamos todos os modos que nós podemos para operar este “eu penso logo eu sou”[55] para aí definir as operações que nos permitiriam apanhar sua relação desde o início até sua colocação em falso: “eu penso e eu não sou”[56], à  uma outra transformação que é possível igualmente e na qual vocês verão o interesse pungente quando eu lhes disser que é a posição aristotélica: eu não penso onde eu sou, há a quarta que recobre esta aqui que se inscreve assim: 

Os círculos simbolizam “onde eu não penso” ou “eu não sou”.
     Eu avancei um tal aparelho como sendo a melhor tradução que nós podemos dar a nosso uso do Cogito cartesiano para servir de ponto de cristalização ao sujeito do inconsciente, este avesso não é negação senão em relação ao conjunto onde nós o fazemos funcionar, este avesso “onde eu não sou, eu não penso”[57], por relação ao cógito.
     É necessário que nós o interroguemos – e o sentido deste vel que o une e a entrada exata que a negação pode tomar – para nos dar conta do que há nela do sujeito do inconsciente, o que nos permitirá partir da lógica do fantasma.

*

47.  Referência aos Écrits.
48.  A versão da E.F.de Buenos Aires coloca aqui o sinal de “semelhante”:  
49.  O texto francês utiliza aqui a palavra voire, provavelmente do próprio Lacan, uma “exclamação que marca a dúvida” e também um reforço da idéia precedente. Não se pode deixar de escutar, contudo, uma certa homofonia com voirie, um arcaísmo o qual, no Séc. XIV tinha o sentido de “lugar onde são depositadas sujeiras e imundícies”, remetendo ainda ao verbete dépotoir, cujo sentido contemporâneo é o de “poço para as matérias fecais”.
50.  No texto francês aparece trifouille, do verbo trifouiller, que significa colocar em desordem.
51.  No texto francês aparece élaguer, cujo significado é: decotar, podar, limpar as árvores, o que arma um certo trocadilho com o trifouille.
52.  No texto francês aparece envie, do verbo envier, que também quer dizer inveja e cobiça.
53.  No texto francês aparece rançon que, em 1723, aparece com o sentido de “inconveniente que comporta uma vantagem, um prazer”.
54.  No texto francês aparece déchet que tem o sentido de “perda, diminuição que uma coisa sofre em seu emprego”, e também de “aquilo que cai da matéria que se trabalha”.
55.  Je pense donc je suis.
56.  Je pense et je ne suis pas.
57.  Où je ne suis pas, je ne pense pas.