Página de Luiz-Olyntho Telles da Silva

Freud/Lacan
O Desvelamento do Sujeito- e a escrita olynthiana


DULCINEA SANTOS
Recife, março de 2009

A leitura do texto do escritor e psicanalista Luiz-Oyntho Telles da Silva evidencia uma escrita tecida no prazer do texto – o prazer que causa a hiância entre este universo e a posição do sujeito que se põe frente a ele. Lugar poroso. Lugar onde o leitor-intérprete, numa postura crítica, distancia-se, discretamente, do corpus teórico, aí jogando inventivamente, gerando múltiplas relações significativas - o que não implica a negação desse universo, justo porque este lugar do leitor-intérprete é o lugar transferencial das afinidades eletivas. Um singular modus legendi.

E como identificaremos, no texto olynthiano, esse modo de lidar com o texto teórico freud-lacaniano? É fácil, porque transparente. O texto do escritor e psicanalista Luiz-Olyntho Telles da Silva traz este modo especial de escrever: o literário - o modus legendi do humano que erra - a errância pelas veredas da linguagem, uma travessia rosiana muito diferente daquela do contar seguido, alinhavado, pois, deste modo aqui, como diria Rosa, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.

Para fazer a interpretação da tradição teórica, que tem como fonte Freud/Lacan, Luiz-Olyntho emprega a estratégia textual da modernidade: uso sugestivo de perguntas, escansões, sonoridade, etimologias das palavras, alusões, alegorias, analogias, metáforas, todos esses elementos - os signos em rotação - numa maneira produtiva, singular, de fazer. E vai singrando mares em Interfaces, um modo dialético de navegar, pelo mundo das Artes - a Pintura, a Escultura, a Música, a Dança, o Cinema, a Literatura, a Poesia, todas essas formas poéticas; segue pelo universo das Humanistas – a Filosofia, a Mitologia; pelo das Exatas – a Matemática, a Topologia, e por aí vai... E digo: vai daimonianamente, e, em paráfrase, digo: vai levando a luz à clareira da manhã. E, desse modo, responde ao modo como pensa W. Benjamin a respeito do ato de leitura: inter-preta mediante um ato de atualização da obra – a de Freud e a de Lacan.

Já no Prólogo, Luiz-Olyntho anuncia seu estilo: a presença da epígrafe seguirá em todos os textos, num diálogo permanente entre o texto teórico, predominantemente expresso na função referencial da linguagem de que se ocupa, e o Simbólico errante... Sim, errante, pois não é pela escrita, a escritura, enodando as três dimensões da linguagem, não é por ela mesma que se chega à metáfora? E a metáfora não é, como diz Lacan, no R.S.I., a questão do errar, o errar da metáfora?

Luiz-Olyntho Telles da Silva envereda pelos seus textos pontuando-os com o modo da hermenêutica contemporânea. Mostremos alguns exemplos.

Formulando perguntas, perguntas que vão se desdobrando, continuamente, em novas perguntas, é desse modo que o autor-leitor-intérprete –, nos textos dos quais se ocupa, vetoriza a abertura que possibilita a passagem à nova teia de relações, com o fim de invocar a reflexão para o corpus teórico, freudiano e lacaniano. Sobre essa forma de construção, Gadamer, em Verdade e Método, diz: A arte de perguntar é a arte de continuar perguntando; isso significa, porém, que é a arte de pensar. Esse é o modo de abertura do perguntado que, segundo ele, consiste em que não está fixada a resposta. E sabemos que essa é uma técnica também empregada por Luiz-Olyntho Telles da Silva no seu ofício de psicanalista, condição que facilita ao analisante o acesso à interrogação subjetiva: Che vuoi? Logo, uma estratégia textual: a pergunta, no campo da Psicanálise, para levar à sideração ao sujeito e, no campo da poética da leitura, para levá-lo à refle-xão, a novas reflexões. Assim é que, para fazer o leitor refletir sobre a noção parmenidiana da Verdade –  –, a Verdade como meio-dizer...Ou Pior, como a traduz Lacan no seminário assim intitulado, ele, Luiz-Olyntho, vai, como em ondas, deslizando, e perguntando, e questionando: (...) quem foi o autor do velamento? A natureza, que ama esconder-se, conforme Heráclito de Éfeso? A natureza, conformadora de mares e montanhas, exterior ao homem? A natureza interior do homem? Mas o homem, conforme uma leitura de Donaldo Schüler, não é sobrenatural? (p.17). Para efeito de compreensão da função metafórica da palabra onda aí, delineemos, pela pena do Poeta Octavio Paz, em El Arco y La Lira, a imagem em nossa mente: en el acto amoroso la conciencia es como la ola que, vencido el obstáculo, antes de desplomarse se yergue en uma plenitud en la que todo – forma e movimiento, impulso hacia arriba y fuerza de gravedad – alcanza un equilibrio sin apoyo, sustentado en si mesmo. Ou seja: o equilíbrio sustentado pelo efeito suspensivo que dá lugar ao dizer. É ele mesmo, o escritor e psicanalista Luiz-Olyntho, após trazer aquelas questões acima, que justifica esse modo hermenêutico moderno de sua escrita: Apresento essas questões para que se possa pensar na especificidade da disciplina psicanalítica, e a partir dessa especificidade tentar compreender, isso mesmo, tentar compreender o sujeito, este ao qual diretamente não temos acesso, mas do qual podemos conhecer sua história, que remonta a milhares de anos (p.17). E, ao longo do texto, sempre quando há um tema que exige reflexão, essa estratégia textual, muitas vezes, faz-se presente.

Quanto ao que concerne às Artes e demais Ciências, o autor mostra-nos erudição, a erudição forjada na alma – é um faustiano! –, oriunda de uma leitura feita de um modo diferente daquela que Fausto recrimina ao seu secretário Wagner, aquinhoado de conhecimentos livrescos: É o pergaminho o manancial sagrado/ Que, para sempre, a sede vos acalma?/ Alívio não terás lucrado, / Não vês jorrando da própria alma. Não, não. Luiz-Olyntho tece e entretece sua leitura com a marca do humano, a pulsação da alma. Tratando de um tema árido, como comumente são todos os que pertencem ao corpus teórico, o tema do Objeto Abjeto, o objeto perdido, ou, como elucida, os restos caídos da relação com a mãe, o que traz? A que alude, para falar, porosamente, da, por Freud chamada, novela familiar – essa que busca, como explica, em última instância, recuperar o lugar dos pais? (p.67) Recorre às Interfaces – aqui, Literatura & Psicanálise –, para facilitar, por esse caminho estético, no uso da percepção estética, a compreensão do texto teórico psicanalítico, e assim pergunta: Quem não lembra o Pinóquio (de Collodi) que foi parar dentro da baleia com seu pai Gepeto? E acrescenta uma referência, bíblica: Outra história bem conhecida é a de Jonas... E sai narrando: ele é engolido primeiro pelo mar e depois pelo peixe, por ter desobedecido ao Senhor (...). Jonas foge para Társis (...). E, após a leitura crítica, que conjuga o estético e o conceitual, inter-preta, psicanaliticamente: ele quer mesmo é dormir narcisicamente reinvestido (p.68).

Luiz-Olyntho Telles da Silvaautor-leitor-intérprete –, inventivo, sensível, recorre à Mitologia para fazer o diálogo com a Psicanálise. Busca, analogamente, a tragédia de Ifigênia, a filha de Agamêmnon, escolhida para o sacrifício aos Gregos aqueus, para articulá-la com questões pertinentes à Instituição Psicanalítica – a qual deverá proteger a Psicanálise, ser tradutora legítima do desejo de Freud, conforme acentua –, e, ainda, para falar do modo como deve ser estruturada, aí lembrando então os últimos seminários de Lacan, de 1980, que asseveram a necessidade de se escapar ao deletério efeito de grupo sobre o desejo. Graficamente, no interior do próprio nome da personagem da tragédia clássica grega, Luiz-Olyntho elege o símbolo que conotará a base em que a Instituição Psicanalítica deve se sustentar, e, retoricamente, pelo símile, conota a situação recomendável: Tal é o ar que o ensino lacaniano aporta e que um pouco faz lembrar o ar requerido pela esquadra de Agamêmnon, o qual, para soprar, exigia um sacrifício, o sacrifício de E gênia (o grifo é meu, p.79). Aí marca, com o símbolo grego, sua leitura estética e teórica, na conjunção Mitologia & Psicanálise:  – E gênia & phallus. O phallus que, significante do vazio, da falta, é o signi , pois (...Ou Pior). O recurso ao símbolo, entremeado no nome da personagem, é uma potencializadora leitura no nível da percepção estética, aqui trazida para interpretar, arejadamente, o texto teó-rico psicanalítico.
 

Extraordinária sua leitura do filme homônimo de Jean-Jacques Beineix, 37º2 Le matin. Como informa o autor-leitor-intérprete, Luiz-Olyntho, trata-se de uma história organizada nos 32 compassos característicos dos blues, na qual Beineix vai cantando, como em uma rapsódia, a epopéia da alienação (p.191). Nessa leitura, aferimos a im-portância do poder significante da Música. A notação musical – em mi e si – é por ele conotada como significantes da não relação sexual entre os personagens Betty e Zorg. Betty, a protagonista, informa-nos o autor, masturba-se, logo na primeira cena. Betty reclama da sujeira, Zorg se interessa, Betty desconversa. Então, Um diz uma coisa, o outro escuta outra. Excelente é sua interpretação desse trecho. Betty reclama que Zorg não a escuta. O autor, então, de posse da estratégia textual, que consiste em levantar perguntas, questiona: – O que é que Zorg não escuta? Vocês escutaram? Houve uma pequena nota desafinada: / – Todos são sujos./ – Quem?/ – Personne... (e Betty acrescenta) – Esquece. O autor, criticamente, assim interpreta, nesse diálogo Música &  Psicanálise: Arriscaria dizer que a nota aqui propositadamente desafinada é mi, a terceira da escala. Trata-se de um instante fugaz em que Betty parece integrar-se no universal através do Todos são sujos, como se dissesse: Todos [os homens são mortais], mas o mi puro não se sustém, desafinando para um bemol e o discurso histérico não se sustenta (p.190). E acrescentemos, aí, também, o traço de sua erudição, que se estende ao longo de todo o texto Freud/Lacan O desvelamento do Sujeito, no seu domínio no uso das várias línguas, aqui ilustrada na articulação que faz, quanto à homofonia, entre o nome do personagem masculino, Zorg, e o substantivo alemão Sorgue, numa referência a Heidegger.

E no capítulo Sob a Transferência, a dança! Essa forma de Arte em relação dia-lética com o texto psicanalítico lacaniano! Em A Dança da Vida, título de um extraordinário livro de Roger Garaudy, sobre essa Arte que contém harmonia, ritmo, som, movimento, o filósofo argumenta: Pela dança, o corpo deixa de ser uma coisa para tornar-se uma interrogação (p.23). Sim, claro!, pois perguntemos: – A linguagem consegue significar os efeitos que ela produz? Claro que não! Pois sem deixar de ser linguagem está além da linguagem!, responderia assim, certamente, aí, conosco, o Poeta Octavio Paz. Mas perguntemos ainda: – Que combinatória Luiz-Olyntho traceja com esses campos que são, aparentemente, tão distintos, Dança & Psicanálise? Prossigamos com ele, voltando à questão inicial do parágrafo, a transferência... Continuemos com ele: Quando falamos em transferência, falamos em amor; e adianta: Lacan nos diz que o amor de transferência se especifica pelo amor ao saber; e escreve: (...) o amor ao saber é o que se opõe ao desejo de saber, na medida em que esconde o horror ao saber, o qual desde logo é o saber da diferença, o saber da castração (p.82); e lembra a frase de Lacan que assevera que no amor se dá o que não se tem (p.83); e adverte contra o extremo perigo que um homem pode correr quando dá ouvidos à demanda de prazer da mulher, lembrando, e mais uma vez na interface com a Mitologia, que Ulisses, com cera, tapara os ouvidos, para não a escutar, e, ainda, que Lacan nos diz que La Mulher não existe, a não ser marcada pela barra (p.87). Baseado nesses conceitos, como ele mesmo afirma, diz então que pensou em algumas características que deveriam nortear a construção de uma instituição psicanalítica (p.87), afirmando que Ela deve ex-sistir, conforme o conceito heideggeriano, em estado de realização, que não deve ser um lugar fechado, que deve ter uma característica moebiana, ora dentro, ora fora (p.87). E então a metáfora, a relação significativa! O momento de sedução da escrita do autor, em direção à interpretação enredada pela paixão, a paixão mediada pela Arte, a dança! O momento em que o autor, Luiz-Olyntho, leitor-interpréte, visando à facilitação das idéias acima, assim arrazoa seu modus legendi, e, claro, também de acordo com a intentio operis: Assim, pensei em uma metáfora que talvez diga melhor o que penso, pois, conforme o ditado chinês, uma figura diz mais que mil palavras (p.87). E, sensivelmente, então, ilustra as noções acima trazidas, passando a descrever, por meio de inventivas relações alegóricas, os movimentos da dança-do-pau-de-fita, uma dança incorporada ao regionalismo gaúcho, como informa (p.87). Descreve, dizendo que há um mastro, de onde caem fitas, ao redor do qual giram quatro dançarinos, homens numa direção, mulheres na outra, ora por dentro, ora por fora, que, segurando na ponta das fitas, vão formando com a trança, em torno do mastro, uma certa escrita (p.88). E presenteia-nos com este expressivo, maravilhoso, texto artístico, texto imagístico por ele traçado para, intencionalmente, representar não só os movimentos dos dançarinos em torno do mastro, mas, analogicamente, também representar o modo de participação do Simbólico na estrutura linguageira - a ex-sistência -, numa leitura estética associada à conceitual:

Figura da p.88

 Ou assim:
 

Essa é uma leitura crítica para arejar as áridas idéias do corpus teórico da Psica-nálise. Uma leitura porosa. Uma leitura sustentada pelos caminhos da suposição – abdução –, caminhos entendidos no sentido etimológico da palavra meta – meta, junto; , caminho, ou seja, um caminhar junto, na companhia de. Um caminhar não seguido alinhavado.  Uma leitura assim justificada pelo próprio Autor:

Quando se pensa na Instituição Psicanalítica, conota-se uma preocupação com o futuro da Psicanálise, e, se queremos nos colocar, inserirmo-nos como elos dessa transmissão, como seus herdeiros, temos antes de mais nada que lembrar com Fausto, Goethe e Freud que é preciso adquirir aquilo que se herdou. Temos que lembrar ainda que a transmissão dessa herança está submetida à lei do fideicomisso: podemos ter todo o usufruto possível da herança, mas temos de transmiti-la aos pósteros sem estragos, de preferência com acréscimos (p.74).

DULCINEA SANTOS é formada em Letras. Faz crítica literária, coordena grupos de estudo junto ao Traço Freudiano Veredas Lacanianas, em Recife.  É Organizadora e Co-Autora de Rodopiano. Conheça dela também Mire Veja -o grau zero da escrita? e ...Ou Pior e Paulo.

Voltar para: Fortuna Crítica
Página inicial