Página de Luiz-Olyntho Telles da Silva
UM PLÁSTICO AMARELO

Luiz-Olyntho Telles da Silva
1963-2006

Para
Aigil Moraes Barth

Quem caminha
Vendo ao longe a Serra da Esperança,
Caminha toda a vida,
Mais três meses,
E não cansa.
CATULO DA PAIXÃO CEARENSE

Mutato nomine de te fabula narratur.
HORÁCIO, Sátiras, 1, 1, 69.


    A
chuva aumentara. O rio subia cada vez mais e já extravasara de muito. Toda a zona ribeira estava embaixo d’água. Viam-se somente os tetos pouco firmes e as canoas que iam e vinham. 

       No céu, um helicóptero evolucionava sem saber a quem salvar primeiro.

    No leito do rio, as pesadas lanchas dos bombeiros faziam soar suas sirenas alertando o perigo iminente. E quem não via o perigo iminente?  Mais um nó na velocidade da correnteza e nem mais tetos sobre as águas se veriam.  E as sirenas soavam.

    Longe, num teto, minha família recusava-se a abandonar a casa.  Era a única coisa que possuíamos. Se as águas levassem nossa propriedade, conseguida com tantas lutas, de que nos valeria viver? Iriam junto! As canoas insistiam junto ao teto e eles, acocorados, um plástico só sobre os ombros, sacudiam negação com a cabeça.

    Era a quarta ou quinta vez que insistiam para que abandonassem seu teto. Fora difícil conseguir aquela casa. Sair dela seria desistir de tudo.

    - E depois da chuva, p’ra onde é que a gente vai? Não, a gente vai ficá aqui mesmo!

   Para onde iria aquela gente depois da enchente? O povo não daria alimentos e cobertores por toda a vida. Nem trabalho suficiente haveria para todos. Alguns veriam suas casas outra vez, mas e os quase cinqüenta mil flagelados, para onde iriam? Desolada, a canoa se afastou:

    - Mulher valente aquela!

    No teto, a criança ainda de peito começara a choramingar. Já um dia e uma noite que estavam sobre a casa e o céu não prometia luz.  Meu menino mais velho - onze anos - o homem quando eu não estava, impacientava-se com minha falta:

      - Mãe, será que o pai volta ainda hoje?

   Eu saíra de manhã numa canoa que vogava solta com um remo quebrado. Fora em busca de um acontecimento que salvasse a situação. Fora em busca de uma possibilidade que parecia fora da realidade. Mas era preciso ir. Era preciso arranjar outro teto antes que parassem as chuvas, e antes que o nosso se fosse.

    - Voceis ficam, Maria. A canoa é pequena. Eu volto logo que arranjá alguma coisa. Coragem.

    O cachorro quis pular para dentro do bote.

    - Fica Pitôco! Tem que cuidá das criança.

    A canoa foi sumindo por entre o que sobrava das casas. Em algumas ficara uma galinha, ou um cão ganindo baixinho. Já entardecia e eu não conseguia voltar. A cestinha de frutas e algumas bolachas por certo começava a esvaziar. A criança precisava de leite e sua mãe, fraca, não tinha. A sirena começava a rarear. Mesmo os tetos iam sumindo aos poucos. Só o helicóptero continuava no ar, embora um pouco mais longe.

    - A água subiu mais um palmo, mãe! Será que o pai não vem?

    - Calma Toninho. 

    O vento que começara a soprar mais forte ameaçava arrancar o plástico de suas cabeças.

    - Quieto Toninho, senão a casa se vai.

    Com o remo quebrado o bote custava a andar, e a correnteza era forte. Era preciso encontrar uma ilha, ou mesmo um teto mais resistente para trazer a mulher e as crianças. Só havia águas. O horizonte verde não estava longe, mas como custava andar contra a corrente; a noite vinha cada vez mais forte e escura. A chuva transformara-se em granizo. O granizo em gelo em minha camisa fina. Não enxergava mais um palmo na frente do caíque. Navegava no escuro sentindo só a força do curso. O barco bateu em alguma coisa. Um teto firme, quem sabe? Tentei tatear esse teto, mas as águas arrastaram minha balsa e em vão tentei encontrá-lo novamente. Com um nó na garganta recomecei a remar. Não era homem de desistir por tão pouco.

     - Não chora Toninho. De manhãzinha o pai aparece.

    Ao longe, uma luzinha foi aparecendo. Novas forças, na esperança, remavam com o remo quebrado. Era preciso alcançar aquela luz. Era uma barca grande. Os homens ajudaram-me a subir. Na luz fraca, olhos admiravam meu cansaço.  Deram-me um prato de sopa quente.

    - Da onde é que ta vindo homem? – perguntou um.

    - Esse é o Inácio, eu conheço! – disse outro.

    - Tô vindo da minha casa. A Maria tá com as crianças no teto, não dá p’ra gente ir lá buscá elas? 

    Baixaram uma lancha a motor.

    - A correnteza está aumentando - comentaram.

    Com um holofote na proa, a lancha começou a busca. Desceram o rio até onde estava a nossa casa. Procuramos durante uma hora e nada. A chuva estava forte. As águas engrossadas corriam com mais força. O holofote buscava em todas as direções. Lanternas ajudavam na procura. Descemos o rio mais ainda. Um toco projetava-se fora d’água e nele, um plástico amarelo.


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- Beatriz Duró