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DUAS CARTAS
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Março
de 2016.
Quanto à formatura, não...
João
estava sentado em sua poltrona preferida, perto da janela, na metade daquela manhã
de sábado, desfrutando da aragem propiciada pelo frondoso caquizeiro.
Era o começo do verão, um Prelúdio de Chopin tocava baixinho no toca-discos,
e ele lia. Na verdade, com os óculos caídos um pouco por sobre a ponta
do nariz, algumas folhas de papel apoiadas no colo e o olhar perdido por
entre as árvores do pomar, estava absorto. Foi quando interrompi
seu devaneio com um beijo em seus cabelos finos, começando a escassear, enquanto enfiava a
mão por baixo de seu colete, mussitando-lhe no ouvido
a pergunta: - Que estás lendo que te levou tão longe? Uma carta do Carlinhos,
respondeu-me, em meio a um longo suspiro. Sabes que ele pouco nos escreve,
mas quando o faz, são páginas e páginas. Acabou de chegar. Sim, ele está bem,
mas me deixou pensando... Essa nossa vida é mesmo estranha: por um lado,
sempre novidades, por outro, sempre o mesmo!
Acabara de deixar as instruções para o almoço com a cozinheira e puxei
uma cadeira para perto dele. Estava curiosa com as notícias de Carlinhos.
Quase três meses que não aparecia em casa. Estava terminando a faculdade
e parecia ter muito trabalho. A longa viagem até em casa tomava-lhe muito
tempo. E eu, sempre com dois corações batendo por ele: que bom que pudera
sair para estudar! Que pena tivesse de ficar tanto tempo longe de casa, longe
de mim... e de seu pai... e de suas irmãs! Não sei qual de nós dois sentia
mais falta dele, por tanto tempo nosso único filho. Depois vieram as meninas,
mas não era a mesma coisa. Quando chegou a hora de ir para a escola, já havia
bons colégios por perto e não precisaram de um internato. Mas o Carlinhos
, sim; precisou. Eu devia estar acostumada com sua ausência, mas não! Desde
os onze anos fora de casa, agora, concluindo a faculdade, já conta mais da
metade de sua vida! E quando fomos forçados a passar quase seis meses sem
vê-lo?! O transporte era difícil, caro, e seus estudos mais caros ainda.
Mas que sabe o coração da razão? Falávamos nele e era aquele aperto no peito!
E quando o víamos, ele parecia duro, um pouco arredio. Já não recebia meus
carinhos com naturalidade. Continuava nos querendo, sentíamos isso! Amava-nos,
mas não sabia demonstrar, pelo menos não como eu gostaria, com aqueles bracinhos
apertados no meu pescoço. Meu menininho... Mas, agora, um doutor!
João apoiou o antebraço sobre as minhas pernas, segurando as folhas da carta para
lermos juntos. Aquele aconchego era sempre um conforto para mim. Logo entendi
seu olhar deitado sobre a carta, tão triste: Carlinhos não iria se formar.
Não com aquela solenidade bonita que tanto desejamos. Receberia sim seu
diploma, no entanto isso seria feito numa cerimônia fechda, na Secretaria
da Universidade, sem nenhuma pompa. Verdade, participar de sua formatura
seria uma enorme alegria, mas, sem pompas?! De qualquer modo, quando ele
vier, comemoraremos entre nós e até, quem sabe, com nossos amigos.
Agora, a tristeza de meu amor, meu companheiro, essa vinha de longe. Nunca
esqueci quando, o Carlinhos recém-nascido, veio me mostrar, completamente
desolado, outra carta, entregue esta não pelo carteiro e sim por um Oficial
de Justiça: o registro de nosso filho, na categoria legítimo,
havia sido impugnado! Sim, pelas leis brasileiras não estávamos casados.
Quando
nos conhecemos, João já estava desquitado, viera de um casamento
muito infeliz. E vomo fizeram tantos, nessa mesma situação, naquela época,
fomos nos casar no Uruguai. No Brasil, alguém nessas condições não podia
se casar nunca mais. Até então, a Lei do Divórcio entrara em vigor apenas
uma única vez, só por um dia, especialmente para a separação de Alzira Vargas,
a filha do Dr. Getúlio. E só anos mais tarde fomos descobrir, absolutamente
por acaso, que nem mesmo no Uruguai nosso casamento tinha validade: havíamos
sido vítimas de um espertalhão que se fazia passar por Escrivão. Mas naqueles
dias ainda estávamos convencidos da legitimidade de nossa relação e João nos
defendeu com todas as suas forças. Ele sabia o que há no nome, em seu reconhecimento
legítimo: sem dúvida reconhecer como seu aquilo que deveras o identifica.
Nessa contenda, fazia valer a razão contida na definição de Mia Couto pra
o nome: a luz que o coração acende. Por sorte, o Sr. Hypólito, Escrivão
do Cartório, teve simpatia por nós, especialmente por João, pois sabia o
que havia por trás da impugnação. Embora estivéssemos bem longe dos palcos
da Segunda Grande Guerra, noutro continente, não estávamos livres de seus
efeitos. Ainda antes de acabar o conflito, recebíamos muitos imigrantes vindos
da Alemanha para se refugiarem naquele vale onde ficava nossa cidade, e
eram hostilizados. Uma lei, assinada pelo próprio Getúlio, justamente aquele
prócer tão admirado por João, proibia o imigrante de falar seu idioma no
território brasileiro. João se opuzera à rigida interpretação dessa lei e
o defendia: era um absurdo aceitar imigrantes e obrigá-los, de imediato,
a assimilar e falar nossa língua, negando-lhes o direito de expressar-se
no idioma que traduz sua historicidade. Essa a razão porque as mesmas pessoas
que o haviam tratado como traidor, quererem agora declarar outra vez nossa
ilegitimidade, os covardes! deslegitimando nosso filho perante a sociedade
civill. Demorou mais de um ano, e graças a intervenção de um advogado, para
conseguirmos seu Registro de Nascimento com o digno distintivo: legítimo!
Nós já sabíamos da indicação de Carlinhos, por alguns colegas dele,
para ser o orador da turma na solenidade suntuosa, agora vetada. Quanto
orgulho sentiríamos ao vê-lo no púlpito, representando seus pares! Lembro-me,
quando fomos buscá-lo no internato, ao término do ginásio, tão bonito naquele
terno azul-marinho! Mas o que mais me tocou, transcorrida a formtura, foram
as palavras do Prof. Palmer, contando-nos de seu discurso no internato,
por ocasião do jantar de despedida: fora um simples adeus, com palavras
de agradecimento a todos. Confessou-se, então, reconhecido desde ele, o
Diretor, até aos professores, e sem esquecer de ajuntar-lhes, citando seus
nomes, a cozinheira, suas ajudantes e as auxilires da limpeza. No final,
todos ficaram profundamente tocados. Por certo, haveria de ser um grande
tribun!. Mas nós, não seria ainda desta vez que o ouviríamos falar.
Agora, eu também olhava ao longe, por entre as sombras do caquizeiro.
João apertou minha mão e levantou-a para secar uma lágrima que já ameaçava
alcançar meu queixo, dizendo: - Bem, pelo menos não vamos precisar pressionar
o Sr. Jacob para terminar logo meu terno.
Fortuna
crítica:
Dulcinea Santos (21.03.2012):
Esse conto abre e fecha com a mesma cena: diante dos personagens, um
frondoso caquizeiro, entre as árvores, propicia sombras que arejam o ambiente,
metáfora vegetal para o olhar, poroso, sombrio, atravessando as lembranças
que reverberam uma história familiar. Vale a pena lembrar aqui o que diz
Silvana Rodrigues Lopez, citada pelo crítico Janilton Andrade, na introdução
ao livro dele, intitulado Da Beleza à Poética: Sendo a obra de
arte um dos lugares da rememoração, ela é a aliança de verdade e beleza
(...) [e] a beleza que se sente perante uma obra de arte (...) resulta
da verdade secreta que nela existe velada ou figurada.
Nessa cena, contemplativo, o pai descansa no colo as cartas que recebera
do filho, enquanto a dialética da vida movimenta sua mente: sempre novidades,
sempre o mesmo. A mulher interrompe-o, carinhosamente. Informa-se do
teor da carta e, ao modo de nosso Casimiro de Abreu, ela canta os anos da
infância que não volta mais. Acolhe, compreensiva, naqueles abraços apertados
de um filho-menino, ao mesmo tempo, este que se tornaria doutor e que, agora,
intimidado pela distância que a vida impõe, parece duro, um pouco arredio,
tinha perdido a naturalidade com que recebia [seus] carinhos. Temos aqui,
nesse conto, a mesma perspectiva do tempo proustiano? Sabemos que, para Proust,
o tempo não só modifica, mas impiedosamente a tudo destrói.
Perspicaz observador dos fatos histórico-culturais que o cercam, Luiz-Olyntho
jamais lhe deixa escapar os rumos que eles tomam; nesse conto, registra
a existência da lei de exceção no Governo Vargas, no uso abusivo e indecoroso
do nepotismo; também verbera contra a condição, por este imposta, a que
submete os imigrantes em terra brasileira. Podemos apontar aqui, por trás
do narrador, a intenção do autor: nunca silenciar!, nunca condescender!,
conforme é possível averiguarmos em sua trajetória pessoal. Esses fatos
poderiam ficar esquecidos nas brumas do tempo, mas o escritor sabe que a
arte é perene.
A última cena se fecha com a imagem da mãe, também se alongando por
entre e ao longo das sombras do caquizeiro tornado ambiguamente ensombrecido,
mais uma vez, por esse olhar errante. É bela, seduz-nos, a nós, leitores,
essa cena final, pela delicada e pungente forma com que traduz, subliminarmente,
a intencionalidade do escritor. Ele não se propõe dizer-nos, com dureza,
que a desistência do terno pronto, expressando a aceitação compreensiva do
pai pela novidade da vida em sua triste mesmidade, provém (sim, podemos inferir
como leitores ativos) da necessária aceitação da inexorável mão do tempo
que cai sobre a sorte humana, a tudo levando! Para compreender a inteligibilidade
dessa arguta síntese inconclusa, vale repetir o que assevera S. Lopez acima:
a beleza que se sente perante uma obra de arte (...) resulta
da verdade secreta que nela existe velada ou figurada.
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Dulcinea Santos é Escritora e Crítica Literária.
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