Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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A ESCRITA E A IMAGINAÇÃO EM
O OUTRO LADO: explícitos e implícitos


Luiz-Olyntho Telles da Silva

Fevereiro de 2019
(Reescrito em março/19)



Senhoras e senhores
Boa tarde.

Analisar a obra de Aldyr Garcia Schlee é sempre um grande prazer e, por isso, agradeço o convite de Alfredo Aquino.
Quero começar com três epígrafes, duas para dizer da obra e uma para dizer da perspectiva da crítica. A primeira delas, gostaria de dizê-la em inglês, melhor, gostaria de cantá-la, com a voz do Frank Sinatra, se me fosse possível, esperando que vocês, de olhos fechados, o enxergassem. Como não posso, farei uma tradução da primeira parte da primeira estrofe, a la mia manera:

Ao sul da fronteira, down Mexico way,
Foi onde me apaixonei, quando as estrelas do céu saíram
                                                                       |para me proteger.

JIMMY KENNEDY e MICHAEL CARR, South of the border.

E, claro, aqui, México é o nosso Uruguai.

A segunda é a seguinte:
Preciso espichar as pernas – disse o Diabo.
ROBERTO BENIGNI, Il Picolo Diavolo.
E a terceira é para deixar clara meu ponto de vista, de que tudo não passa de uma opinião:
Só levo a certeza
De que muito pouco sei
Ou nada sei.

ALMIR SATER, Tocando em frente.

Para falar da escrita e da imaginação – a rainha das faculdades, no dizer de Baudelaire –, irei ocupar-me da última novela de Schlee, O Outro Lado, subintitulada de Noveleta Pueblera e publicada por ardotempo, no final do ano passado. E é já nesse subtítulo que o autor, como quem começa a pôr as garras de fora, mostra seu estilo linguageiro, com palavras de lá e de cá da fronteira da sua Jaguarão: noveleta, apesar da sonoridade espanhola, é um substantivo de bom português, com a conotação de novela curta; pueblera, contudo, é um adjetivo da língua espanhola, de uso predominante no Uruguai e na Argentina, para dizer dos camponeses que habitam os pequenos povoados, esses que, por aí, chamam de pueblos; no dizer de Schlee, um arremedo urbano.

É desses pueblos que Aldyr Garcia Schlee retira seus dois personagens centrais, José Jacinto e Marita, exemplares perfeitos dos rejeitados perdidos pelos cantos do mundo. Sem nome de família, de origem desconhecida – ou melhor, sombras, silhuetas com poucos detalhes, porque mais que isso não interessa a ninguém –, e, no entanto, sofrem e amam como qualquer cidadão bem nascido.

Seus vinte e dois capítulos descrevem a vida dele e dela. Centrado em uns poucos focos narrativos, vai nos contando as andanças de um gaudério sem paradeiro certo, e de uma mocinha, órfã desde muito pequena. A morte do pai dela, mesmo sendo um pai de pouca serventia em casa, desestrutura a família. Dispersam-se os irmãos e Marita vai morar com uma madrinha, sempre à espera de que a mãe viesse buscá-la um dia. Ela sempre promete, mas nunca vem. A mãe tem que atender o padrasto, porque logo de viúva juntou-se com outro, e tinha que atendê-lo, e mais uma coisa, e mais outra loisa, morreu e nunca veio. O padrasto que traz a notícia é o mesmo homem que vem viver com a madrinha. Um homem que tinha uma coisa, que quando se trancava com a madrinha no rancho, ela ia olhar a água do poço, chamava pela mãe, e o poço só repetia e repetia a invocação; o padrasto por vezes pegava na barra de seu vestidinho e ficava olhando ao longe, com o olhar perdido, e dava-lhe um medo, tanto medo que, quando ela estranhava as coisas, já sabia que ele estava chegando, em geral completamente bêbado, e tinha de ajudar a madrinha a carregá-lo para dentro. Ou, então, ele vinha com uma garrafa de aneja, ao entardecer, quando pegava a guitarra para tocar uma Palomita blanca, a feliz pombinha que, seu voo seguindo, não sente a dor que o cantor está sentindo. Quem nunca ouviu uma vidalita, com tão expressivas letras do cancioneiro argentino, cantadas, especialmente, por Estrella Morente, não sabe o que é escutar a voz cadente de uma nostalgia, a mesma nostalgia de Marita, que a levava a sonhar que a mãe, enfim, chegava, mas chegava quando ela já estava afogada no poço ou queimando no forno de assar pão. E Marita, em um sonho recorrente, sonha com o incêndio do rancho, um lobisomem vindo sobre ela, três homens armados, de ponchos molhados e bocas sem dentes arrombando a porta.

É nessa solidão que ela conhece José Jacinto, melhor, conhece a sombra de José Jacinto, sua silhueta na pipa de água. Um moço bonito, gordo, de cabelama e bigode, empurrando sua pipa repecho acima, mas sem se trocarem uma palavra, ambos mal se olhando, por tímidos, por não saber o que dizer. Uma cena repetida não se sabe quantas vezes, se duas, se três... até chegar aquela tarde do domingo chuvoso e corisquento, Marita tirando a roupa e enfiando-se na tina, pensando em José Jacinto, ensaboando um ombro, talvez com aquela languidez do pensamento disperso, quando, de súbito, abre-se a porta da quincha e aparece o padrasto de braços abertos, os olhos injetados de desejo. Era o lobisomem, com a força de três homens armados, desdentados, e os ponchos molhados. O pior então se deu: não tendo como escapar, nem ninguém para ajudá-la, que seus gritos não os escutava ninguém, nem mesmo aquele bobo Filemón – herdeiro do nome de um cristão de tão bom coração, como nos fez saber São Paulo –, que, se os trovões lhe deixassem ouvir os gritos de ajuda, não saberia o que fazer, dominada totalmente que estava pelo padrasto, aquele hijo-de-puta. E tinha de dizer assim para mostrar seu ódio enquanto era lambuzada, de cima a baixo, e invocava a Santa Maria Puríssima, o olhar fixado na palha da quincha... até se sentir tocada. Aí tudo o mais pegou fogo, incendiando-se, e ela nada mais podendo fazer senão se perder e abrir-se para tudo o que ele tinha a oferecer.

Depois, ainda teve de limpar todo o rancho para a madrinha não ver a desarrumação da tina virada, o chão embarrado e ela mesma lambuzada e toda marcada dos chupões do padrasto. Quando quis descansar, a madrinha veio pedir-lhe ajuda, que o padrasto voltava bêbado e enlameado. Precisou então sair e ajudá-la a carregar o famigerado para dentro do rancho. Depois ela só ficou com o olhar perdido, não atinando ajudar em nada, até ouvir o tropel de José Jacinto que mal apeia e já se vai outra vez, com Marita correndo atrás e ele estendendo-lhe a mão e puxando-a para a garupa, a trote, campo afora, longe das estradas, sem rumo, evitando os lugares de gente conhecida, até o rancho de doña Celeste.

Sem nenhuma palavra, de nenhum lado, a velha os recebe e, enquanto apeiam e acomodam-se, vai ao poço buscar água. E é aí, como no melhor teatro, que José Jacinto e Marita trocam suas primeiras palavras. Enquadrada pela porta, talvez com uma luz vindo de dentro, por trás dela, de tal modo que a figura parecia mais uma silhueta, ele lhe pergunta:

- Como te chamas?
- Marita, ela responde.
-Sou José Jacinto, disse ele – por certo com os olhos baixos –, segurando a ponta da camisa que lhe saía para fora das calças.

D. Celeste, a curandeira, não tarda em acertar-lhe o diagnóstico: seu problema é encantamento puro, e isso a deixava apartada do mundo; por deslumbre, ofuscada, tinha arrobamiento, quer dizer, ficava fora de si, alelada, tonta, o que resultava em um estado de alienação. Será preciso alguns dias, algumas semanas, para a cura processar-se. José Jacinto precisa ir-se por um tempo e, ao despedirem-se, olham-se firmes, um dentro dos olhos do outro; não sei se saberia dizer por quanto tempo, mas era como se um dissesse que voltava e o outro que esperava. Uma semana depois, uma visita, mas a paciente precisa ainda de mais tempo, até Marita aprender de novo a não ter medo de sonhar e para de novo tomar gosto por viver. Viver! D. Celeste deixa bem claro o que entende por viver: - Não é somente estar por aí; mas não é muito: é só querer viver mesmo, gostar das coisas, dos bichos, da gente. Para dar ênfase à sua fala, o narrador emprega o conceito em espanhol: em vez de gostar, usa o verbo querer, tornando o conceito tão expressivo que, sem dúvida, poderia muito bem contribuir para uma definição do final-de-análise.

Mas, vejam bem, para examinar os outros focos narrativos, será preciso, além dos capítulos centrais, tomar em conta também os periféricos. Até aqui fiz como que uma resenha de um dos focos da novela, abordando principalmente o explícito. Uso esse termo em homenagem ao Dr. Paulo Luis Souza que, três anos atrás, quando estive em Pelotas, na companhia de Aldyr Garcia Schlee, para falarmos de seu livro Os limites do impossível, nos surpreendeu com uma manchete estampada no jornal da cidade, na qual se lia: Uma cena de amor explícito no Instituto João Simões Lopes Neto. Menciono-o por acreditar que, quando falamos do explícito, dizemos também, mesmo sem mencionar, no nível da enunciação, do implícito. E é dos implícitos na obra de Schlee que quero falar-lhes agora.

Naquela apresentação de novembro de 2015, eu disse das dificuldades enfrentadas pelo narrador e do modo original encontrado por Schlee para dizer isso. Foi na história da Mulata Flor, quando o narrador, por vezes confundido com a personagem, mas que não é essa personagem, tendo de fazer uma viagem em diligência, não sabe onde meter as pernas e menos ainda consegue espichá-las. Acontece que eram seis viajantes, logo doze pernas e, por coincidência, doze personagens no romance. E era mesmo um assunto o equilíbrio necessário para a descrição dos difíceis personagens. Trepidantes como uma carruagem a galope, corriam o risco de bolcar-se a todo o momento.

Cair é um risco constante, ainda mais com Marita na garupa, o padrasto sempre bêbado, a madrinha com peso demais para carregar, D. Celeste envelhecendo e Filemón preso para sempre na casa dos pais por ter caído em tentação, como imaginaram. E tem também o Diabo, por definição, o anjo caído!

Terão reparado que o livro abre com uma Explicação. Ora, ora! Ele ainda escreve Uma explicação inicial, como se fora uma desculpa pelo retardamento da publicação para não ser acusado de plágio. Plágio? Quem viu o filme do Benigni, Il Picolo Diavolo, do qual ele temia ser acusado de plagiário, também terá se perguntado: - Plágio? Por quê? Vi o filme e não encontrei plágio nenhum. Não seria por falar no Diabo, esse personagem tão antigo como o mundo, que teria cometido plágio, e menos ainda pela importância da obra de Benigni. E plágio se apaga com o tempo? Poderíamos pensar que se o medo fosse este, de cometer plágio por causa do Diabo, seria mais lógico ter mencionado o Fausto, de Goethe, ou o Doutor Fausto, de Thomas Mann, ou mesmo a Trágica História do Doutor Fausto, da autoria de Christopher Marlowe, baseado no anônimo Faustbuch,1  de 1587, no qual a vida do histórico Doutor Fausto começou a ser fantasiada. Mencionaria talvez o tão censurado O Mestre e a Margarida, de Mikhail Bulgakov – cujo Diabo sabia do futuro –, o qual eu apostaria que Aldyr também o conheceu, ou ainda O Evangelho segundo Jesus Cristo, do Saramago, em que a posse do mundo é repartida entre Deus e o Diabo. Quem sabe, mencionasse até A Revolta dos Anjos, de Anatole France. É difícil pensar que não tivesse se lembrado de Raskólhnikov e na visita que lhe fez o Diabo, sob a identidade de Svidrigáilov, em Crime e Castigo, de Dostoiévski. E que dizer do lindo e impressionante romance de formação, de Ricardo Güiraldes, Dom Segundo Sombra, que Schlee havia traduzido recém em 2011, tornando-o, acredito, melhor ainda, no qual se pode apreciar o fabuloso embate de Miséria com o Demônio e todo o seu séquito?! Mas plágio? Cópia?! Não. De nenhum deles, de jeito nenhum! No entanto, que algum Diabo tenha se atravessado em seu caminho, em alguma de suas noites, tirado seu sono e insistido para trocar ideias com sua Marlene sobre a oportunidade da publicação daquele texto que dizia tanto de si, ah!, isso não posso negar. Mas, plágio? Só se fosse para dizer que o narrador, como o Diavolo de Benigni, também sentia necessidade de espichar as pernas. Agora, se não se trata de plágio, o que muito possivelmente esteja sendo dito por Schlee é que ele, como, ademais, nenhum autor, não escapa da angústia de influência, para usar uma expressão de Harold Bloom. A criatividade poética de um autor deve-se a uma força demoníaca, à relação do autor com essa força. Na antiga Grécia se dizia daimon e conotava, nas palavras de Michael Drayton (1563-1631), todo aquele que, pela grandeza de sua mente, aproxima-se dos deuses. Assim é a relação de Schlee com seus antecessores, especialmente, no caso, eu diria, com Güiraldes. Não se trata de que fosse possuído por um diabo, pois, quando um autor se torna forte, torna-se ele mesmo um diabo em luta com outro diabo. Assim que O Outro Lado pode ser tomado como uma hipérbole de Dom Segundo Sombra. Aqui, o herói já não anda só com a sonhada tropilha de baios pelos campos, dispõe ele, também, de trens e de outros meios de transporte; é mais urbano. Mas tanto José Jacinto, como Fábio Cáceres – o herói narrador de Güiraldes –, enfrentam, cada um à sua maneira, uma mudança de condição, tal a do escravo e a do amo, como diriam Hegel e Lacan, que é uma das formas de enfrentar a morte em vida. Se a relação do escravo é com a essência do amo, e como a mudança dessa condição tem a ver com uma aproximação dessa essência – o que é sempre temido, quiçá por desejado –, temos aí uma importante fonte da angústia de influência.

Os leitores que tiveram alguma proximidade com Schlee sabem também de sua paixão por Jorge Luis Borges. Ele estava, em seus últimos tempos, organizando um livro de diálogos com os contos do velho escritor argentino. Pois bem, acredito que soubesse do gosto de Borges de colocar nas entrelinhas coisinhas que só ele sabia e que ninguém iria descobrir. Pois Schlee também tinha esse gosto e suponho que sua explicação tenha sido um modo de avisar a seu público de uma mensagem aí implícita: prestem atenção à relação do Diabo com o narrador.

Prestar atenção, aliás, é preciso sempre.

Nas dedicatórias, por exemplo, se a primeira é uma referência aos seus personagens, conforme podemos ler com a ajuda do primeiro parágrafo do Começo, na última, nomeando Vera Huszar, homenageia os que o acompanharam neste outro lado, e no livro com que hora me ocupo, o outro lado é, explicitamente, o lado de cá (p.16). É o Brasil, por certo, mas é também esta vida. Enquanto o outro lado já será mais ao sul, south of the border.

A segunda dedicatória é à sua amada esposa, a Marlene, sempre tão junto a ele em tudo o que fazia, e mais ainda no que ele não fazia, pois das coisas práticas da vida parece que Aldyr não se lembrava nunca.

A página das epígrafes é também muito interessante, um jogo gongórico de palavras. Começa com uma frase em itálicas, indicativas da voz do outro: É uma história nova / sem nenhuma novidade / e uma perpétua novidade / sem nenhuma coisa de novo. É bem o estilo de Schlee. E, em seguida, o nome do maior literato brasileiro do século XVII, o Pe. Antônio Vieira, seguido do título do livro, História do Futuro, e das indicações I (em algarismo romano) e 73 (em arábico), a indicação usual para capítulo e página. Então pensei que a frase e a referência aí inserida estavam relacionadas, mas devo dizer-lhes que não há correspondência. A História do Futuro2  está estruturada de tal modo que a indicação não pode ser nem de capítulo, nem de página. Acredito que o I seja da primeira parte, e o 73, do parágrafo, lá no capítulo sexto. Agora, o que aí encontramos não é a frase em itálicas da epígrafe e sim uma referência a Alexandre Magno, que teria feito melhor espelhando-se em Daniel do que em Lísipo ou Apeles. São duas epígrafes, e não uma, e a forma dessa segunda epígrafe parece-me inovadora; pelo menos, nunca antes havia lido algo assim, só consistindo de referência de um autor. Se, de início, pareceu completamente non sense, contudo, quando começo a leitura da novela, no primeiro capítulo, e vejo o personagem debruçado sobre a ponte, um pé no Brasil e outro no Uruguai, fascinado por sua sombra, não posso deixar de pensar no júbilo infantil frente ao espelho, e senti necessidade de dar mais atenção à Güiraldes e à Vieira.

A História do Futuro é o relato de uma preocupação com Portugal. Vieira, que, como José Jacinto, também tinha um pé em um país e o outro noutro (nasceu em Portugal e veio para o Brasil com seis anos de idade), estava preocupado com o porvir de sua pátria mãe e lhe prognosticava a sede do Quinto Império, do qual o seu amigo, o rei Dom João IV, seria o grande imperador, capaz mesmo, para isso, de ressuscitar.

Pois essa preocupação com a posteridade me fez repensar a explicação antecipada: trata-se de um tipo de prolepse com a finalidade de avisar ao leitor que, embora ele não perceba inicialmente, o Diabo, com conhecimento do futuro, pelo menos do futuro imediato, o neque instantia, como dizia Vieira, estará presente desde antes do Começo.

O que Schlee quer nos contar é tanto uma história imaginada, quanto a história da imaginação, essa capacidade que nos humaniza.

Seus personagens estão com ele há muito tempo, fazem parte dele, mas chega um momento em que já não podem ser só dele. Precisam sair pelo mundo. E é assim que José Jacinto acorda um dia forrado do dinheiro encontrado em um pacote na estação de Rincón, sem ninguém por perto. E, sem a menor necessidade aparente, ao contar para Marita, mente dizendo que seu achado deu-se dentro do trem, e disso muito se arrepende. É um dinheiro que nunca contou, nunca soube quanto era. Só pegava o que precisava e nunca chegou a gastar tudo. Guardou as notas em uma lata de querosene, com uma tampa de madeira falquejada por ele mesmo. Embora fosse dinheiro graúdo, não lhe permitia comprar coisas para Marita, nem mesmo uma torneira, porque, enfim, não havia água encanada. Está bem! Mas por que precisou mentir? Qual a diferença entre tê-lo encontrado no banco da estação ou no do trem? Aparentemente, nenhuma! Verdade que o elemento comum é o banco, e também que se adonou do dinheiro, como se tivesse todo o direito do mundo. Suponho que a mentira, aqui, seja o modo de expressar um dilema moral. Se tomarmos esse pacote de dinheiro como representante da força da imaginação, da força criativa de um artista, fica a incógnita: ela vem de dentro ou você a encontra por aí, em algum rincão? Acredito que Schlee resolve sua questão passando adiante sua dádiva. Transforma seu dom em uma narrativa e a reparte com o mundo. É uma história que o acompanha e que vai elaborando dia a dia por meio de suas vivências mais íntimas, como é o encontro do homem com a mulher. Seus contos passam a ser sua vida. Quase não há palavras, diz o narrador, mas isso é tão somente dizer da dificuldade de encontrá-las, de modo a dizer tudo e o tanto que tem para contar. Como na experiência do rio, também o conhecimento do outro se dá pela sombra. Marita conhece primeiro a sombra de José Jacinto na pipa do carro. Mas talvez seja assim porque José Jacinto não para em lugar nenhum. José Jacinto é como um Diabo, sempre precisado de espichar as pernas, arrombar portas e riscar novos trilhos nos campos sem fim para passar sua mensagem. Mas também pode ser assim porque Sombra, Dom Segundo Sombra, é o nome dado por Güiraldes ao mestre do gaúcho, aquele que ensina tudo que ele precisa saber. E o gaúcho José Jacinto representa as idas e vindas da imaginação.

E no capítulo III de suas andanças, como se fora no começo do teatro, depois das três batidas – pam, pam-pam, pam-pam-pam –, entra em cena, triunfante, El Diablo, dirigindo toda uma trupe de artistas em direção ao Rio de Janeiro, com parada em Jaguarão para uma única apresentação, no Teatro Esperança, quando despenca do trapézio e cai. Ploft! Já não há luta, o Diabo cai por si mesmo. Não custa lembrar que Vieira pensou em intitular sua História do Futuro como Esperança de Portugal. E a esperança de Vieira era o império da paz e do respeito do homem pelo homem. Quando Vieira diz que teria sido melhor Alexandre ter se espelhado em Daniel, é por suas profecias de conquista. Lísipo e Apeles apenas esculpiram seu busto e pintaram seu retrato. A face de um homem, contudo, precisa espelhar o futuro.

Dadas as explicações, antes do primeiro capítulo, mais uma nota, intitulada essa de Começo. Conta-nos aí de sua relação com os personagens e de sua intenção de libertá-los. Agora que Aldyr já não está entre nós, esse Começo, que assim, solito, lê-se com um ê fechado, de substantivo, talvez se possa ler com o e aberto do verbo começar: começo. Como se quisesse dizer que aqui começa seu caminho para uma libertação que lhe permitirá, assim como a seus personagens, estar em todos os lugares. Acredito tenha sido esse seu modo de nos dizer adeus!

Obrigado.

_______________
1.  Esse título não passa de uma contração do original e longo: História do Doutor João Fausto, o Mui Famoso Mago e Negromante, de como ele Firmou um Contrato com o Diabo por um Prazo Determinado, das Estranhas Aventuras que Durante Esse Tempo ele Presenciou, Provocou e Viveu, Até, Por Fim, Receber sua Bem Merecida Paga.

2. A História do Futuro  está dividida em duas partes, sendo a primeira intitulada como Livro Anteprimeiro e dividida em doze capítulos, cujos parágrafos são numerados de 1 a 309; a segunda parte, intitulada como Livro Primeiro e Segundo, tem o Livro Primeiro dividido em três capítulos e o Livro Segundo em sete capítulos, apresentando os parágrafos sem numeração. As páginas, por sua vez, certamente terão um número variável em suas diversas e diferentes edições.
 
Aldyr Garacia Schlee


Conheça

Edição
Fortuna Crítica


   
Fortuna Crítica:

- Donaldo Schüler:
  "Uma bela homenagem ao nosso amigo Schlee. Exploraste bem o diabo romanesco e o inseriste no amplo quadro da diabologia ocidental."
11.04.2019

- Maria Eunice Moreira:
  "Teu texto sobre O Outro lado tem profundidade, análise acurada das personagens e dos recursos narrativos. Tua radiografia das personagens é excelente, perspicaz, incidindo sobre a construção desses seres ficionais, mas também sobre seus aspectos mais particulares, mais íntimos. Schlee explorava bem isso, valendo-se de silencionamentos, espaçamentos, um falar sem falar, o que confere riqueza ao texto. Tu mencionas isso com muita propriedade.
   Outro ponto muito interessante na tua avaliação - e isso, como sabes, é um elemento de destaque na contemporaneidade -, é o diálogo que o Schlee faz com outras tradições, sejam elas literárias ou não, como por exemplo um filme ou uma imagem - e tu aproveitas isso e exploras na tua análise. Ao leitor menos avisado ou menos acostumado com a intertextualidade, essa característica ressalta na tua leitura. Assim, chamas a atenção como T. Mann, Anatole France, Dostoiesvki, enfim, a relação é extensa, podem estar presentes e circular pela obra. Nessa linha, destacas epígrafes, mencionas personagens de outros contos e livros do Schlee, como é o caso do Contos sobre Gardel, como gosto de dizer. A intertextualidade se dá também com o cinema. Acho que esse aspecto um ponto alto na tua análise e me agrada muito ler e perceber os caminhos que percorres."
06.04.2019.