Luiz-Olyntho Telles da silva  Psicanalista


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MARIA MADALENA

Luiz-Olyntho Telles da Silva
agosto/2023

Ditoso o que empreendeu de Ulisses a jornada,
Ou como ess'outro que conquistou o tosão,
E que após retornou, com mais tino e razão,
A viver entre os seus a vida descuidada.*
(JOACHIM DU BELLAY, Os Pesares [Trad. de Guilherme de Almeida]).

                                                                            

Estou preparando a bagagem para visitar a Sicília, esta América da antiguidade, onde outrora desembarcaram dórios, jônios, fenícios, cartagineses, romanos, bizantinos e islamitas. Ela, como ademais todo o sul da Itália, ficou conhecida como a Magna Grécia, tal a quantidade de monumentos ainda bem conservados que aí ficaram.

Desde a Idade Média, a Itália, como um todo, tornou-se alvo de peregrinos em busca de cultura. No Século XVIII, um dos ilustres visitantes foi Goethe. Percorrendo-a por inteiro, demorou-se na Sicília. No princípio do século XX, mais exatamente em 1910, Sigmund Freud visitou-a, explorando a Catania, as ruínas de Agrigento, os parques arqueológicos de Selinunte e de Catalfini-Segesta. Depois de tantos outros, está chegando a minha vez.

Freud ainda era moço, não havia alcançado os sessenta anos, mas eu, hoje, ao me preparar para visitar os mesmos lugares, e possivelmente mais alguns, faço-o com vinte e poucos anos a mais. Por isso, vamos dizer assim, preciso organizar, com antecedência, uma lista de coisas, a começar pelos remédios (as últimas viagens me ensinaram que realmente preciso deles); depois os sapatos confortáveis, para aguentar boas caminhadas, e também as roupas para as diferentes ocasiões, pois serão pelo menos duas semanas sem lavanderia.

A internet oferece muitas informações sobre roteiros, lugares para visitar, hotéis, distâncias e também sobre a história, informações que não ocupam lugar na bagagem mas que são muito importantes. Agora, para ter uma antevisão das pessoas, de suas intimidades, é preciso recorrer aos livros, aos seus autores. Em minha biblioteca identifico dois sicilianos: Pirandello e Lampedusa. Um de Agrigento e outro de Palermo.

Os nomes de seus personagens são de uma sonoridade encantadora: Tanino, Tanotto, Carluccio, Bindi, Mirina, Bandini, Quagliola, Picinelli, Cosimino, Ciccio, Mimi, Marùcolli, Giorgina, Carlotta, Ruffo, Grigoli, que também pode ser Grigó ou Grigoletto, e por aí vai. Soando como apodos, sentimos como se os conhecêssemos desde sempre.  Do Romance, O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, publicado na Europa no final dos anos cinquenta, do século passado, e no Brasil, em 1961 – cuja leitura a fiz ainda no meu primeiro ano da Faculdade –, lembrava apenas que era um bom livro e que tinha gostado muito. Relê-lo foi como se o estivesse lendo pela primeira vez. E é mesmo muito bom! Suas descrições nos levam a percorrer aqueles salões palacianos, ainda sem luz elétrica, mas com todo o conforto do ottocento. Estudioso das estrelas, Dom Fabrizio tinha sempre a companhia do Padre Pirrone, seu confessor. Ocupado com a administração de sua propriedade, tendo ao fundo os conflitos políticos entre o reinado e a república, com os regimentos de Garibaldi, o Príncipe Fabrizio enfastiava-se com a histeria e a carolice da esposa, a Princesa Stella, que não se entregava a ele, jamais, sem antes recitar três ave-marias e fazer o sinal-da-cruz. Desafogava-se o Príncipe com as prostitutas, o que não o impedia de, regressado a casa, vendo a Princesa adormecida, agora calma sob o efeito da Valeriana, os cabelos bem arrumados sob a touca, suspirosa, enternecer-se diante dela. E então, pela manhã, a Princesa tinha a ocasião de fazer o sinal-da-cruz, as três vezes requeridas.

Estava nisso, quando, involuntariamente, me atravessou a lembrança de Maria Madalena, mais exatamente, de seu retrato pintado por da Vinci.

Foi assim: estávamos, minha mulher e eu, em Barcelona...

Entre os lugares programados para visitar, constava a Igreja de Santa Eulália. É o mesmo nome de uma irmã muito querida e a visita seria uma maneira de homenageá-la. Depois, diziam, era uma santa milagreira. E lá fomos nós ao encontro da Catedral Católica de Barcelona, dedicada primeiro à Santa Cruz, e, depois, à Santa Eulália, uma donzela mártir, da época da dominação romana. Depois desse período, e antes da invasão árabe, a Espanha foi dominada pelos visigodos – entre os séculos V e VIII –, que construíram, no mesmo local uma primeira catedral. A essa sucedeu uma outra construção, dita paleo-cristã, cujos restos podem ser visitados no subsolo. A atual foi construída entre os séculos XIII e XV e tem sofrido diversas reformas.

Há aí, ao lado da nave central, capelas para alguns dos santos da Igreja. Entre elas, chamou-nos a atenção uma dedicada a São Raimundo de Peñaforte, com sua escultura jacente, em mármore multicor, sobre o sarcófago do século XIV que antes estava no Convento de Santa Caterina.

Ficamos encantados com as obras de cantaria. De estilo gótico, suas esculturas são adoráveis, desde as gárgulas na forma de unicórnios, elefantes e cavaleiros, os míticos grifos, o Pai Eterno cercado de anjinhos para cobrir a junção das paredes de uma abóbada, até os vitrais filtrando uma luz âmbar. No claustro, o jardim cercado pelas colunas góticas estava muito bem cuidado. Foi-se a manhã e não vimos tudo. Passava já das doze horas quando fomos visitar a sacristia. Não havia mais ninguém aí e, mesmo na nave central, restavam poucos. Talvez o silêncio reinante tenha sido a causa de voltar nossa atenção para o ruído de um quadro balouçante na parte interna da porta, quando a fechamos atrás de nós. Pendurado a um enorme prego, um verdadeiro cravo, lá estava a enorme Santa Maria Madalena, pintada por Leonardo da Vinci. Estávamos boquiabertos, impressionados com a beleza da pintura. E justo naquele momento estava entrando na sacristia, por uma outra porta, na parede oposta, um sacristão. Era um rapazote dos seus quinze, talvez dezesseis anos, que nos chamou a atenção pelo cabelo loiro e bem frisado, vestido com uma túnica vermelha encimada por uma alva sobrepeliz que, vendo nossa surpresa, logo nos explicou que o quadro, pintado de encomenda, havia sido doado à Igreja com o compromisso de que estivesse sempre ali, naquela sacristia, naquela porta, sob aquele prego, e que dali não poderia nunca sair, nem ser vendido, nem reproduzido; as fotos estavam proibidas. E, de fato, olhando o quadro com mais atenção, reparamos em uma inscrição que, começando na margem superior, desce pela direita, seguindo pela margem inferior, para terminar no alto da esquerda com os seguintes dizeres: 

ESTA IMAGEN.DIO:A ESTA:SV CAPILLA / DON PERO ERNANDEZ:DE VELASCO:QUARTO CO / DESTABLE:DE CASTILLA:DE LOS DE SV LINAGE:

Na verdade, nunca encontrei nenhuma reprodução dessa imagem, fosse em livros de arte, fosse na internet. O que encontrei de parecido foi uma pintura da Santa, na mesma posição, mas com um fundo totalmente escuro, ela mais ruiva, conhecida como Madalena Penitente, feita por Salai (Gian Giacomo Caprotti), que foi o principal colaborador de Leonardo da Vinci.

Contudo, na lojinha da Igreja encontrei um postal com sua imagem e é esta que, emoldurada, está em meu consultório. Depois de tantos anos aos pés do divã, raramente alguém lhe dá atenção, preocupados que estão os analisantes com suas próprias e sofridas obsessões.

Quanto a mim, quando olho para o quadro, penso na importância da doação estendida ao outro. Os exegetas veem nela, em Madalena, o esforço de compreensão. Pode ser. Os Evangelhos contam que Cristo foi sepultado às pressas, porque, morto em uma sexta-feira, não houvera tempo para a preparação da unção do cadáver, uma vez que, no sábado judaico, nada disso é permitido. Por isso, na manhã do domingo, quando já era o anunciado terceiro dia da Ressurreição, Magdalena – que havia enriquecido na próspera cidade de Magdala, e que não havia entendido nada das palavras do Senhor –, munida dos unguentos e perfumes necessários, todos muito caros, aproxima-se do sepulcro para ungir Jesus e o encontra vazio, só o reconhecendo quando ele, ressurreto, a chama pelo nome de Maria.

Pode ser que o importante fosse seu caminho em direção ao entendimento e à compreensão, mas o que temos, de presumível, é que Maria Magdalena agiu conforme os ditames de seu coração, e desinteressada de si mesma, assim, a ele entregou-se por inteiro.

Talvez o Príncipe também fizesse o que lhe mandava o coração, mas não acredito que o fizesse por inteiro.
______________
*Heureux qui, comme Ulysse, a fait un beau voyage,
 Ou comme cestuy-lá qui conquit la toison,
 Et puis est retourné, plein d'usage et raison,
 Vivre entre ses parents le reste de son âge!


FORTUNA CRÍTICA:

Dulcinea Santos
 (1):

Numa viagem a um dado país, o que buscamos, além de visitar-lhe os lugares afamados, conhecer-lhe a história, apreciar-lhe a beleza de seu mundo natural, desvelar-lhe a sociedade, com seus costumes, sua economia, suas famílias, contemplar-lhe os museus, a arte, o teatro, a música, a pintura, a arquitetura com seus monumentos já consagrados? Penso que temos boa resposta para isso nesse roteiro traçado por nosso cronista.

Assim nos diz, antes de sua viagem em companhia da esposa a Sícília, Luiz-Olyntho:  Agora, para ter uma antevisão das pessoas, de suas intimidades, é preciso recorrer aos livros, aos seus autores. E então busca em sua biblioteca a dois sicilianos, com os quais diz identificar-se: Pirandello e Lampedusa. Por que razão, afinal, nos livros e não in loco? – pergunto-me. O que seu gênio literário lhe propõe, podemos articulá-lo, logicamente, ao longo dessa maravilhosa crônica. Vejamos.
 Ao deparar-se, certa vez, em viagem à Espanha, com um quadro de da Vinci esboçando a imagem de Maria Madalena, ele vai associando-a a outras, reinventadas: a Madalena de um discípulo deste, Gian Giacomo Caprotti; a Madalena de uma reprodução, feita num postal, que está no consultório do analista, ele mesmo, e, imaginem, num símile está, junto a ela, o Príncipe lampeduziano, Dom Fabrizio! Estabelecida a comparação entre os dois, é a Madalena que lhe atribui a capacidade da doação desinteressada.

Enfim, penso (e posso estar fazendo uma alegorese, não sei; tento, pelo menos, basear-me na intentio operis) – retomando o que ele nos diz, que, antes de viajar, para ter uma antevisão das pessoas, de suas intimidades, é preciso recorrer aos livros, aos seus autores –, penso que o que ele nos oferece como sentido para nossas viagens, é o que, com a alusão a esta Madalena bíblica, podemos inferir: nas viagens, recebemos, genericamente, de um povo de dada Nação a mesma espécie de doação estendida ao outro. Quanta riqueza carregamos viva em nossa memória, gratuitamente! Não encontramos aí, verdadeiramente, um sentido para nossas viagens?

Dullcinea Santos (2):

Um verdadeiro texto literário fornece uma gama de significados e efeitos de sentido que nos fazem cabriolar a mente. Principalmente, quando a erudição vem a reboque. Ora, temos sim que dar trato às bolas! Tal como ocorre com o autor, e conosco, na função de leitores e críticos, a erudição  desenvolve a curiosidade desinteressada que é a verdadeira raiz e a verdadeira flor da vida mental (O. Wilde).  Portanto, volto aqui para continuar meu comentário, tentando desvelar o não dito.

A comparação entre o Príncipe Fabrizio e Maria Madalena requer atenção mais diligente. Há dois elementos comuns entre esses personagens: a prostituição (a dela está implícita, esse conhecimento é adquirido na leitura da Bíblia), e a posição de ambos face a um corpo. O traço que os distingue: enquanto ela busca o corpo de Jesus para, desinteressadamente, ungi-lo, ele deseja o corpo sensual da esposa, que agora dorme, e a contempla – só depois que dá vazão ao sexo, com ternura. A função estrutural dessa construção dos personagens: ela, a Maria Madalena da Bíblia, é elevada a símbolo da humanidade; ele, o personagem romanesco, um pequeno sujeito em sua errância mundana.

Ainda, quando o cronista diz que, para viajar, é preciso ir antes aos livros, a fim de adquirir uma antevisão das pessoas, de suas intimidades, aqui precisamos nos deter com atenção: - A que pessoas ele se refere? As que são sicilianas, e daí ter escolhido os dois escritores sicilianos? Claro que não! Esta escolha foi apenas uma homenagem concedida ao país que vai visitar. Para tal fim, conhecer as pessoas em suas intimidades, ele poderia tomar qualquer escritor da mesma estatura que estes. O que ele pretende, buscando nos livros, apreendemos nas entrelinhas: é tentar desvelar um pouco da natureza humana, com o fim de não ser tomado na Sicília – conforme o sentido dado pelos gregos, claro -, por um bárbaro - aquele que não fala a língua do povo que o recebe, e por isso é hostilizado (como língua, entendamos, abrangentemente, aquele que não goza da mesma civilização e cultura). O que pretende, sim, não é muito difícil inferir: é ser, como visto, acolhido noutro país como um visitante, mas não só!

E há ainda explícito os motivos de ter escolhido a Sicília: a curiosidade desinteressada que sua erudição provocou por esta América da antiguidade, onde outrora desembarcaram dórios, jônios, fenícios, cartagineses, romanos, bizantinos e islamitas. E, ademais, por essa região que tornou conhecida como a Magna Grécia... E, ainda, não esqueçamos: há um Pai – o mentor e guia de sua caminhada no mundo, que andou também curioso por aí....