Luiz-Olyntho
Telles da Silva Psicanalista |
|
Fragmento
e mito na obra de Lenir de Miranda
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Dezembro de 2019
A obra de Lenir de Miranda é um retrato de nosso tempo. Um tempo em que pese ao incremento da tecnologia aos meios de comunicação, as pessoas parecem cada vez mais sós. As ameaças à integridade do homem parecem mais presentes do que nunca. Começamos a reconhecer-nos como seres belicosos. Delenda est Cartago, desde Catão, tornou-se nosso grito de guerra. E os resultados das guerras são sempre devastadores. Os bens, as vidas, os parentes, os amigos, todos perdidos. A tristeza e a desolação invadem o coração dos sobreviventes. Mas a história tem mostrado, contudo, que, em meio ao desastre, sempre aparecem espíritos críticos para questioná-la. A exposta fragilidade do homem permite aos cronistas esmiuçá-la a nu. E renovam-se as leituras que o apreendem como objeto, permitindo daí surgir novas visões antropológicas. Homero teve como pano de fundo a Guerra de Troia; Políbio contou-nos sobre as Guerras Púnicas; entre as duas grandes Guerras, em 1922, instalou-se, no Brasil, a Semana da Arte Moderna, e, na Europa, no mesmo ano, Joyce publicou Ulisses e Eliot, Terra Devastada. Renovava-se a linguagem nas artes levando o leitor e o espectador a pensar sobre o mundo criticamente. E é nesse modernismo que vamos encontrar as bases presentes na obra de Lenir de Miranda, fruto da fragmentação da vida, mas não só. É fruto, também, precipuamente, de uma estratégia que se propõe a questionar as convenções a partir de dentro, exigindo para tal, tanto o distanciamento como o envolvimento simultâneo do observador. Na psicanálise, Freud nomeou esse movimento como unheimlich, o estranhofamiliar. Lembremos que, de acordo com o Mestre, o Eu possui uma dimensão enganadora, aparecendo como algo exterior, autônomo e unitário, embora continue numa dimensão psíquica interior, indeterminada. Para efetivar esse efeito de distanciamento, os artistas recorrem à paródia, uma transgressão da convenção, a exemplo do Dom Quixote e do Ulisses. O que não podemos esquecer, portanto, é que, antes de tudo, essas obras modernas, cada uma a seu modo, retomam a história do mundo, realizando, paradoxalmente, a mudança e a continuidade da cultura, ao mesmo tempo. Ulisses, de Joyce, por exemplo, é a recriação, em um só dia, vivido por Leopold Bloom, dos dez anos da odisseia de Ulisses, o personagem de Homero, de mil anos antes de nossa era; e Terra Devastada, de Eliot, é fruto da leitura da lenda do Santo Graal, origem dos romances de cavalaria da Idade Média. De Homero, do grande Homero, que alguns nem acreditam tenha existido, diz-se que teria composto, ele mesmo, tanto a Ilíada como a Odisseia, ou então que teria juntado partes cantadas por diferentes aedos, escolhendo os versos mais adequados para um e outro de seus épicos. Esta é a minha hipótese preferida. Um poema feito de fragmentos de outros poemas, criados, talvez, ainda sob a luz das chamas de Troia. O Ulisses, de Joyce, é uma paródia da Odisseia de Homero. As vicissitudes enfrentadas pelo multifacetado herói, no grosso e encapelado mar cor de vinho, encontram espaços perifrásticos ao longo do dia de Poldy (um hipocorístico de Leopold Bloom). O monstruoso ciclope Polifemo, de Homero, por exemplo, está representado, em Ulisses, por um enorme Cidadão – escrito com maiúscula, como se fora nome próprio – que, na falta de uma grande pedra para jogar em Udi, vale-se de uma analógica lata de biscoitos para jogar na carroça do vice-rei. Udi, parônimo de Odi, de Odisseu, é Ninguém e, ao assim dizer-se, Ulisses perde-se na multidão. Pois vejam, é desse modo, como um entre outros, que vai aparecer no quadro de Lenir de Miranda, Ninguém e Nós Chegamos aqui [fig. 1]. As sereias, da Odisseia, são as parodísticas garçonetes, as senhoritas Douce e Kennedy, do capítulo XI. Mas é preciso olhar um pouco mais embaixo, como sugere o poeta Juarroz: enquanto a perseguida carroça conota uma fuga, uma fuga per canonen, no melhor estilo de um Bach, uma fuga que traduz o sofrimento humano, como uma vez disse Donaldo Schüler, as Sereias, por sua vez, oferecem um elemento metonímico para a compreensão do todo. Σειρά (Seirá), o primeiro elemento de sua etimologia, tem o sentido de corda, laço, liame e mesmo armadilha, todos recursos necessários, tanto para a organização de um texto, como para prender a atenção do leitor. Fig. 1: Ninguém e nós chegamos aqui Joyce é conhecido pelo uso dos abundantes neologismos, das inventivas e curiosas palavras-valise construídas com restos de diferentes línguas, e por servir-se da história do mundo para seguir os passos de Odisseu. Assim, o primeiro elemento a ser parodiado é o mesmo Santo Graal de Eliot, em Ulisses, a singela vasilha de espuma de barba, seguida de uma frase do livro dos Salmos. E começa a missa, com mais passagens da Última Ceia. O poema de Eliot, por sua vez, começa o primeiro Canto – O Enterro dos Mortos – em Abril, quando, no hemisfério norte, é primavera, embora para o poeta seja o mais cruel dos meses. Não é difícil pensar que quando Deus fez a Terra, por certo, fosse primavera, a estação do renascimento. E logo começam as litanias, as eternas ladainhas capazes de transformar qualquer imaginação em verdade. O Filho do homem, nesse primeiro Canto, é Ezequiel. Antes de ser chamado por Deus, Ezequiel tem uma visão: em meio a uma grande claridade, vê quatro figuras, como de animais, mas que lembravam uma forma humana, cada uma com quatro faces e quatro asas, sob as quais apareciam mãos voltadas para as quatro direções; as faces eram semelhantes às de um homem, mas tinham face de leão, do lado direito, e de touro, do lado esquerdo; e todos tinham face de águia. Estavam sobre uma roda que, quando eles se moviam, esta se movia também. Estivéssemos selecionando um time de imaginativos, mesmo não sendo Deus, também o escolheríamos! O profeta Ezequiel, na obra de Lenir de Miranda, surge em Quem te chamou[?] [fig. 2], miscigenado com o migrante Ulisses – a coruja, no canto direito, inferior, faz lembrar Atena tomando suas providências para chamar o herói ao convívio da família –, e transformando-se, nas bandejinhas de Fast Food, na célebre vidente, Madame Blavat [fig. 3]. Depois, Eliot segue com Tristão e Isolda, com a Divina Comédia e termina o primeiro Canto junto com Baudelaire, dizendo que o escritor e o leitor são semelhantes, como irmãos. Fig. 2: Quem te chamou Fig. 3: Madame Blavat É, pois, assim, que vamos encontrar, também na obra de Lenir de Miranda, de feição moderna, a reescritura do mito; na atualização do passado, ressignificando-o, permite-lhe participar do sistema de significação da cultura em que vive, incorporando-lhe novas mensagens. Seu trabalho está impregnado desses consagrados mitógrafos. O elemento comum entre eles, quanto ao processo criativo, são os fragmentos constituintes, a paródia aí incluída. Vale lembrar que a fragmentação é índice da subjetividade e, também, da contextualização histórica e social. Afinal, o sujeito não é sem o Outro. De seus Migrantes, Lenir também poderia dizer: Mon semblabe, mon frère! Eles surgem inconformados com nosso lugar no mundo, desde nossos antepassados, cruzando o Estreito de Bering, até nossos contemporâneos, lotando as três pistas da Free Way, indo de Oeste para Leste, surpreendidos com os outros tantos viajantes que vêm do Leste para o Oeste. Lenir, autorreflexivamente – et pour cause –, insere-os em sua ficção. Observemos suas telas De lá pra cá [fig 4] e Aqui Migramos [Entre Nós] [fig. 5]. É Ulisses ao sabor do vento, mas também somos nós, mais surpresos ainda ao constatarmos que, entre a vida e a morte, somos todos migrantes! O valor simbólico da obra de Lenir de Miranda, como, ademais, o da obra de cada artista, consiste na denúncia dessa nossa realidade; consiste em mostrar que suas dificuldades, como seus sonhos, são também os nossos sonhos e as nossas dificuldades. Fig. 4: De lá para cá Fig. 5: Aqui migramos [entre nós] Os migrantes migram também pelo poema de Eliot. No segundo Canto – Uma Partida de Xadrez –, aparecem um tanto perdidos, talvez por terem se evadido do paraíso, como sugere um verso de Milton. Filomela, depois de estuprada por seu cunhado, o Rei Tereo, e ter sua língua cortada, é transfigurada em rouxinol – como conta Ovídio, em As Metamorfoses –, e o seu tiu tiu ainda canta seus gemidos aos ouvidos insensíveis. Então, uma pergunta – com as cores de um eufemismo –, surge da peça de John Webster, O Caso da Lei do Diabo: Que rumor é este? A resposta que se segue é motivo de inspiração para Lenir de Miranda. E nos apresenta O Vento Sob a Porta [fig. 6] (prova de que, por trás dela, Fig. 6: O vento sob a porta Fig. 7: Que faremos amanhã? Fig. 8: E os outros testemunhos das noites de verão. As ninfas já partiram. Fig. 9: Para Tirésias o mar tem muitas vozes. Fig. 10: O mar tem muitas vozes. Fig. 11: A montanha que o mundo persegue. Fig. 12: Nas montanhas em que livre te sentes. Fig. 13: Se ao menos aqui se ouvisse um sussurro de água. Fig.14: O que disse o trovão. Embora, oficialmente, na exposição Pintura Périplo estejam seus trabalhos dos últimos dois anos, acredito poder afirmar que aí está a obra de toda a sua vida, fruto de uma dedicação constante à sua própria construção em meio às incertezas do dia a dia. Se a odisseia de Ulisses é um périplo pelo Mediterrâneo, o Périplo de Lenir, como o de James Joyce, é o do cotidiano, por uma terra devastada pelos conflitos. Em uma de suas grandes telas, a artista escreve: lá onde andares aqui [fig. 15]. É um aviso aos navegantes: lá, onde andares, não se deixe enganar, é aqui! O nevoeiro marinho pode confundir, mas é sempre aqui, e agora, como cantava aquele pássaro de A Ilha, o último romance publicado em vida por Huxley. Fig. 15: Lá onde andares - aqui. Depois, enquanto Dante prepara a travessia das almas pelo Aqueronte, Eliot, ao reconhecer um velho companheiro das galeras de Milas, chama, aos gritos: - Stetson! É uma clara alusão às Guerras Púnicas. Foi na primeira delas, conforme Políbio, que se inventou o corvus, misto de escada e plataforma para prender um barco ao outro e mais facilmente matar o adversário. Então, enquanto o poeta pergunta ao velho companheiro de armas se o cadáver que ele plantou, já começou a brotar, nossa artista, altaneira sobre os bulbos enterrados, retratando-se indagativa em meio à sua tela, faz coro com o poeta: Dará flores este ano? [fig. 16]. E nós, por nossa vez, podemos nos perguntar: as obras de arte são como flores nascidas de nossas atrocidades?e dietro le venia si lunga tratta Fig. 16: Dará flores este ano? Vale dizer ainda, que, em meio à exposição de Lenir de Miranda, há uma parede da galeria Ângelo Guido que requer nossa especial atenção. Ela está intitulada como Poemáticos conturbados [fig. 17]. Em frente a ela (para que melhor se localizem) está uma mesa com bandejinhas de Fast Food, alimentos para a alma, como a artista as designa, estabelecendo aí um diálogo crítico. Pois bem, esses Poemáticos, Fig. 17: Poemáticos conturbados. Fig. 18: Referências a Duchamp. Fig. 19: Referência a Cézanne. Fig. 20: Referência a El Greco. Fig. 21: Referência a Dali. É nessa luta que retomo a pergunta do poderoso díptico de Lenir, uma pergunta que expressa toda a insegurança dos dias de hoje, quando é primavera e renova-se a vida todos os dias: - Que faremos amanhã? Fig. 22: Que faremos amanhã? |
Lenir de Miranda: Que faremos amanhã?, 2017. Acrílica sobre tecido, lámina de latão, caixa de madeira e cera de abelha, 102x160cm. Col. da Artista. Lenir e Luiz-Olyntho FORTUNA CRÍTICA:
- Maria Carpi: - Dulcinea Santos:
Recife, 10 de janeiro
de 2020
|