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A CAMINHADA
Luiz-Olyntho
Telles da Silva
Fevereiro de 2020.
Minha consulta tardou um pouco. Por causa
de uma cirurgia complicada, o médico atrasara todos seus horários,
mas logo iria me atender. Desta vez, se ele me perguntasse, poderia responder,
até com um certo orgulho: - Sim, estou caminhando! Afinal, o Dr. Fasolo
vinha insistindo, há muito, para eu adotar esse exercício, e,
no nosso último encontro, assustou-me de tal modo que terminei por
levar a recomendação a sério. Nunca fui o que
se poderia chamar de um homem sedentário. Meu pai brincava, dizendo
que eu tinha um bicho carpinteiro dentro de mim. Mas, embora sempre tenha
me exercitado, com a desculpa de estar muito ocupado com o trabalho, passava
longos períodos de preguiça. O tempo foi passando, o colesterol
aumentando e os triglicerídeos, nos limites, piscando a luz vermelha.
Agora, com uma frequência de três vezes por semana (quase sempre),
tenho de confessar: - É uma experiência nova! A regularidade,
contudo, tem a virtude de abrir um novo espaço para pensar.
No princípio, minhas caminhadas eram à tarde, mais para o fim
do dia, quando a jornada de trabalho chegava ao fim. E agora, com a chegada
do verão, e do calor, a continuidade foi se tornando difícil
e a preguiça, dando seu sinal de vida, já começava a
insinuar que não ia adiantar tanto assim, seria melhor deixar passar
o calor. Mas não! Desta vez a luzinha vermelha dos exames de sangue
foi mais forte e passei as caminhadas para o começo da manhã,
cedendo-lhes meu horário preferido de leitura.
Nas primeiras vezes, estudava o caminho, indo cada vez por uma rua diferente,
girava em torno de alguma praça, fazia o mesmo trajeto, caminhando
na direção contrária, até encontrar um percurso,
perto de casa, quase plano. Depois dessa descoberta, esse itinerário,
de quilômetro e meio, tornou-se meu périplo preferido. Duas voltas
em quarenta minutos e era isso. Nesse meio tempo, vi subirem dois prédios,
andar por andar, desde as fundações até os acabamentos,
sem falar dos que estavam já em fase final de construção
e dos que recém começam. Ainda no inverno, quando caminhava
ao meio dia, por ser mais quentinho, podia assistir aos vendedores de comida.
Vêm com seus autos, abrem o porta-malas e servem prontinhas e refrigerantes
gelados para os operários que pagam no final da semana, quando recebem.
A caminhada de hoje, contudo, foi diferente. Eu já observara as árvores
floridas do caminho, vira as Patas-de-vaca perderem suas flores e florirem
os Flamboaiãs, enquanto as Extremosas continuavam florindo, persistentemente,
quase o ano todo. Dia desses reparei em uma Buganvília, de um branco
como nunca tinha visto na vida! Aos poucos fui reparando também nas
pessoas. Nos mesmos horários, são, quase sempre, os mesmos que
caminham. Hoje sei que o rapaz, sempre de jaqueta, caminhando acelerado, é
o zelador de um dos prédios pelos quais passo nesses dias. Está
sempre apressado, mas o interessante é que este, independente do horário
que eu passe, encontro-o sempre na rua. Bem pode ser uma enorme coincidência,
e até algum exagero de minha parte, mas termino por me perguntar que
tipo de trabalho fará em seu prédio. De uns tempos para cá
passou a me cumprimentar, com um movimento de cabeça e levando a mão
até sua gorra. Não sorri, mas é simpático. E
tem as Babás. Algumas levam crianças nos carrinhos, mas a maioria
passeia cachorros, quatro, cinco, às vezes mais! É divertido
ver, não vou dizer as matilhas, pois, quando se diz assim, logo se
imagina uma coleção da mesma espécie e, no caso, não
me parece cabível; penca parece mais apropriado, como a última
que vi, formada por um Labrador, um Poodle, um Pastor alemão, um Chihuahua
e mais um Beagle. Todos em paz! Tem um cãozinho, um Dachshund que
tem uma Babá só para ele. Outro dia deparou-se com outro, da
mesma raça, na janela de uma casa, e começaram a latir, sem
parar, um para o outro, ou seria para a outra, para uma cadelinha? Não
sei. Não parei para ver no que aquilo iria dar. Mas há outras
pessoas que passeiam seus próprios pets. Alguns talvez só passeiem
o cão da família, às vezes até a contragosto,
com jeito de quem acha chato juntar os excrementos; outros, como uma senhora
muito bem arrumada, de salto alto e um vestido azul que, pelo seu modelo,
logo me lembrou Charlotte, a personagem do filme The wooman in red
– dirigido por Gene Wilder e representada por Kelly LeBrock –, talvez o façam
rapidamente, o suficiente para sua cadela Maltês (usava uma fitinha
rosa na cabeça!) satisfazer suas necessidades e ela poder correr para
seus outros compromissos. Há também os que passeiam orgulhosos
de seus bichinhos de estimação. Um desses é um senhor
de meia idade, alto e elegante, mesmo no seu simples traje esportivo, de calção,
camiseta, tênis e boné. Passeia dois Weimaraner esbeltos, daquela
cor cinza que lhe é típica, os olhos claros, perscrutadores,
e a cabeça sempre erguida, farejando alguma caça. Nossos
encontros não são regulares. Sempre caminhamos em sentidos opostos.
Algumas vezes me olha, mas nunca me cumprimenta.
Mas hoje foi diferente. Talvez tenha sido por causa da praça, vazia
naquela hora matinal, sem a algazarra das crianças, os brinquedos parados...
Era ainda muito cedo, mas senti a falta delas. Suas presenças proporcionam-me
o conforto de ver que a vida continua, sempre renovada. Talvez tivesse sido
a leitura da crônica de Arturo Pérez-Reverte, lida no final
de semana, em que, ao nos contar dos livros que nunca lerá, diz também
de sua relação com os buquinistas, com outros autores e também
com os imaginários leitores que já leram os livros que em sua
busca vai adquirindo. Acho que foi isso! A conjunção dos dois
episódios transportou-me a outras paisagens. No meu percurso,
helàs, não há livrarias, nem sebos, nem buquinistas.
Aliás, não há comércio nenhum. Melhor, tem uma
quitanda, e é só! Quando vou aí, raramente, falamos
de futebol, pois há sempre uma TV ligada apresentando alguma partida.
Mas isso, em outros momentos, para uma compra de última hora, nunca
quando estou caminhando. Nestas ocasiões, eventuais interlocutores
são os funcionários de algum prédio, que estão
varrendo a calçada, regando o jardim ou pintando alguma grade, e os
diálogos, quando vão além de um simples bom dia, é
para falar do tempo, que ameaça chuva, que precisa de chuva ou que,
finalmente, firmou. Há um porteiro que, embora não esteja sempre
em sua guarita envidraçada, e nunca tenhamos nos falado, quando me
vê, abana sorridente, e eu abano de volta. Mas buquinistas não
há! Aliás, em toda a cidade, quantos existem, hoje em dia? O
Gustavo, que agora trabalha na Bamboletras, e quem mais? Noutros tempos, tinha
o Alexandre, na Kosmos. Sabia tudo de livros e sempre tinha boas indicações,
aquele senhor da Sulina, o Arnaldo, lá embaixo, na Borges. Dava gosto
conversar com ele sobre os livros. O Xavier, da Leonardo da Vinci, com seus
livros franceses... Mas hoje, compro livros pela internet e já não
conheço os livreiros. Uma pena! Meus encontros de caminhada são
esses. Hoje, a propósito, avistei uma nova caminhante, uma senhora,
passando um pouco da meia idade, com o abdômen levemente protuberante,
arrastada por um Poodle. Foi ver a cena e imaginar o cão levando sua
própria guia, entre os dentes, para a senhora, insistindo para ela
leva-lo à passeio.
Ah! Para mover a máquina do tempo, contribuiu também a falta
do elegante senhor dos Weimaraner. Pois logo me lembrei de Goethe, sua amizade
com Schiller e a importância da insistência desse amigo para ele
persistir na redação do Fausto. Nessa época, Goethe
já estava morando em Weimar, no centro da República Alemã,
a convite de Carlos Augusto, Grão-Duque de Saxe-Weimar-Eisenach, que
o nomeara Ministro de seu governo. Contudo, muito crédito Goethe não
dava à sua própria obra. A segunda parte, inclusive, ele pediu
que a publicassem apenas após a sua morte, pois pensava que cairia
no esquecimento. Afinal, que sabemos nós do futuro? Talvez tenha sido
o sombreado das árvores em meu caminho, a solidão na praça,
onde um único sabiá bebericava, gota a gota, de um bebedouro,
e logo pensei no futuro que nos aguarda, após cada instante vivido,
como uma floresta na qual se penetra pela primeira vez, desconhecida. Nós
a imaginamos de um jeito que pode ou não corresponder à realidade.
Lembrei-me também de Vieira, falando da neque instantia, quer
dizer, do futuro próximo, como aquele do qual se pode fazer alguma
previsão. Mas de um futuro mais distante, a presciência
é impossível! Quando Goethe imaginaria, por exemplo, o horror
da tomada da sua Weimar pelos Nazistas, ou a glória, no começo
do presente milênio, a mais de dois séculos e meio de seu nascimento,
na comemoração dos duzentos e cinquenta anos do Simpósio
de Cambridge, do tema lhe ser dedicado? Pois aí, em 2002, Karl Guthke,
em um estudo consagrado aos viajantes ingleses que visitaram Weimar, na época,
por sua causa, chamou-o The Weimaraner. Em português, diríamos
um Weimarense, e a ironia vem por conta do mesmo nome da raça
do cachorro, batizado pelo príncipe, que adorava seu cão de
caça, com o gentílico da região. Goethe passou a maior
parte de sua vida aí. E fiquei a me lembrar de trechos do Fausto,
de minhas primeiras incursões no estudo da língua alemã,
de um Pastor protestante que me iniciou nas primeiras palavras, e também
de um vizinho, da minha idade, que me ensinava a pronúncia de Wie
geht es? – Como vais? E, então, o Dr. Fasolo abriu a porta do
consultório com sua fórmula costumeira: - Vamos passar, meu
caro.
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Para fazer sua crítica,
Fortuna Crítica:
Sergius Gonzaga:
Uma esplêndida crônica de paixão
pela literatura.
Aguinaldo Severino:
Ô Beleza!
Virginia Leal:
Tricô sobre a alma de um flanêur a fazer
exercícios um tanto quanto compulsórios....Mas lá nessa
alma continua a deriva do ser para bem pousar a atenção aqui,
ali e acolá....Maravilhoso, texto, Luiz-Olyntho!
Mirza Weck Dos Santos:
Tão gostosos de ler teus textos, Luiz-Olyntho!
Quando se lê bastante, muitas vezes termina-se um livro quase por obrigação.
Hoje terminei um nestas condições, e aí me deparei com
tua crônica, que me fez sentir como se estivesse degustando uma deliciosa
sobremesa, depois de uma refeição insossa! Obrigada, querido!
Juan Carlos Mosca:
Que buen escritor Luiz-Olyntho Telles da Silva!
Maristela Leivas:
Bah! Grande inspiração construida nas
caminhadas, elaboradas a tantas memórias. Coisa de bicho carpinteiro,
por sinal um lindo pássaro, que pude conhecer ontem, numa área
de preservação! Agora com este texto entendo melhor a expressão,
parecer com um bicho carpinteiro, aproximando o fazer do escritor ao toc
toc das antigas máquinas de escrever!
Ana Mottin:
Que caminhadas profícuas!
Esther Brum Chagas:
A zona de conforto nos tira o privilégio de conviver
com o quotidiano e dele tirar a inspiração para escrever. Uma
crônica que nos leva ao final, caminhando com o autor. Parabéns!
Mary Rolando Rosa:
Parabéns Luiz Olyntho , bela narrativa de tuas
caminhadas. Também caminho, no meu bairro, mas não observo
o que se passa ao meu redor. Vou prestar mais atenção.
Adriana Regina Bianchi:
Nossa!Que inspiração! Estas caminhadas
estão te fazendo muito bem,Telles. Dr. Fasolo é um excelente
médico.
Dulcinea Santos:
Pois já não nos dizia o crítico
Massaud Moisés que "a crônica é a poetização
do cotidiano", reivindicando seu historiador? Parabéns, Luiz-Olyntho!
Cristiane Koch Puperi:
Fiquei encantada com a narrativa!
Marisa Batista Warpechowski:
Que belo texto, LOTS e que bom que segues firme nas
cami nhadas. Eu tb em minhas corridas vou observando essa cotidianeidade,
as pessoas em suas rotinas, e as mudanças de estação
que vão vestindo nossa Porto Alegre com diferentes cores."É
um tempo que se abre para pensar". Bem isso. Boas caminhadas. Abraço.
Iris Körbes:
Que primor de texto! Ao caminhante-narrador nada escapa.
É observador atento às cores da vida. O caminho vai se
fazendo ao ritmo dos passos ligeiros (queimar calorias), o que dá
a fluidez e o prazer da leitura. Da paisagem externa é
incitado a relembrar personagens que já não estão mais,
de conversas sobre livros em livrarias de nossa Porto Alegre. Mas o
caminho é longo e o pensamento voa alto e longe e voa até a
Weimar de Goethe. E como palavra puxa palavra, há uma sequência
de associações históricas e literárias, agraciando
o leitor com reflexões e sabedoria. O talento e a capacidade de erudição
do autor tornam A Caminhada num texto primoroso.
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