R e s u m o
O trabalho consiste em uma leitura de alguns pontos do capítulo
5 de Raízes do Brasil, de S. Buarque de Holanda, e de associações
daí decorrentes. Desde a proposta de confronto entre família
e Estado, passando pela concorrência entre os cidadãos, o conceito
de cordialidade é examinado desde a Antígona de Sófocles
aos dias de hoje, com uma incisão no período marcado pela segunda
guerra mundial. Depois de caracterizar a cordialidade como uma característica
comum a todos os povos, ensaiando seu posicionamento como uma ligação
entre as pulsões de vida, amorosas, e as de morte, destruidoras (conforme
descritas por Freud), o autor destaca a originalidade de S. B. de Holanda
em haver reconhecido esta característica no brasileiro, condição
primeira no caminho de construção de uma independência
simbólica. Buscando exemplificar uma das faces desta cordialidade
do brasileiro, o texto finaliza com uma breve e particular leitura da Ópera
do Malandro composta por Chico Buarque de Holanda.
Es
wird den Menschen offenbar nicht leicht, auf die Befriedigung dieses ihrer
Aggressionsneigung zu verzichten.1
SIGMUND FREUD,
Die Unbehagen in der Kultur (1930[1929])
A
preocupação com a cordialidade é uma preocupação
com a ética, e este Colóquio é uma sacudida em direção
ao acordar, se me permitem o trocadilho. Quem nos sacode é a Profª.
Kathrin Holzermayr Rosenfield, e depois de acordados não podemos
permanecer na indiferença.
Isto me lembrou de um certo diálogo entre Costa-Gravas e o Prefeito
de uma cidadezinha do norte francês, ao final das recentes filmagens
de
Le Couperet – um filme sobre o desemprego para a televisão
francesa. Quem conta a história é Fernando López em
La Nación: Costa-Gravas, horrorizado com as palavras ao mesmo tempo
sinceras e amargas - justamente por isto terríveis – do Prefeito,
dizendo que hoje
Já não se pode fazer nada, teria feito
o seguinte comentário:
A indiferença é o principio
da morte. Vejo ao redor de mim pessoas que, com a experiência, tornam-se
um pouco cínicas: são os que dizem que as coisas, de qualquer
modo, nunca mudam. Eu resisto e trato de fomentar esta rebeldia. – É
assim que escuto a sacudida proposta da Profª. Kathrin: um anátema
à indiferença. É desde aí que sua proposta faz
laço social e é por isto que eu lhe agradeço o convite.
Agradeço por me levar a pensar nesse conceito estranho ao campo da
Psicanálise, um conceito no qual eu nunca havia me detido até
então.
Estamos preocupados com a ética e ela não é a moral.
Quando penso em ética penso nas conseqüências dos atos,
do ethos, nossos costumes, nossa casa, nossa pele. Aquilo que fazemos tem
sempre uma conseqüência, queiramos ou não, saibamos ou
não!
Eu lhes propunha então o trocadilho
acordar, com o duplo
sentido de
tirar do sono / acabar com a diferença. Pois para
acordar, no sentido de
despertar, nada melhor do que
o teatro. Trata-se de possibilitar a um maior número possível
de pessoas os instrumentos necessários para a construção
da crítica; por isto o teatro.
No texto princeps de nossas discussões, eu diria o capítulo
5 de
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda,
“O homem Cordial”
2, ele começa pelo teatro,
com a
Antígona de Sófocles. Sua intenção
é a de examinar o conflito existente entre os valores do Estado e
os valores da Família. Estarão lembrados da montagem desta
peça aqui em Porto Alegre por iniciativa - tanto quanto eu sei -
da Profª. Kathrin, sob Direção do Luciano Alabarse sobre
um texto traduzido pelo Prof. Lawrence Flores Pereira. Não é
difícil imaginar uma linha de base para o nosso Colóquio sobre
a cordialidade partindo daí com uma aguda incisão no período
da segunda guerra mundial, assinalada pela obra de Thomas Bernhard, especialmente
sua
Praça dos Heróis cuja apresentação
poderemos assistir já a partir de amanhã no Teatro São
Pedro. É aí, na
Heldenplatz, que Hitler, depois de ter
pressionado em 12 de março de 1938 seus compatriotas ao
Anchluss,
à unificação com a Alemanha, profere em 02 de abril
seu discurso triunfal sendo saudado efusivamente por uma multidão
de Austríacos simpatizantes.
3
Examinemos antes um pouco mais o nosso trocadilho,
acordar. Ele
tem a mesma etimologia da epigrafada
cordialidade, ambos originam-se
de
cor,
cordis. Interessante que para o vocábulo
acordar,
o nosso tradicional Aurélio - o outro Buarque de Holanda - nos dá,
como primeiro sentido a conotação de
Tirar do sono, despertar,
chamar, enquanto a conotação de
conciliar, acomodar
- própria da cordialidade - irá aparecer como sua
décima primeira posição. Já o inestimável
Houaiss nos dá duas entradas para o vocábulo: a primeira com
o sentido de
fazer desaparecer diferenças e, ao contrário
do Aurélio, para ele o sentido de
fazer sair do sono é
a sua segunda entrada. Como se pode ver, desde aqui, os acordos nunca são
fáceis. Interessante é que a etimologia de acordar e de cordial
remetem ao antepositivo
cord, derivado também da mesma raiz
latina, com o significado de
coração como sede da alma,
da inteligência e da sensibilidade.
Minha proposta de trabalho será então a de fazer algumas
associações a partir de alguns pontos desse quinto capítulo
de Sérgio Buarque de Holanda desde a minha disciplina e tentar algumas
considerações.
Seu texto me parece indicar uma divisão em quatro partes: uma
introdução em que esboça uma visão ideal da
diferença entre a família e o Estado; depois a substituição
da ordem familiar por princípios abstratos e sua conseqüente
crise; a terceira parte está dedicada ao exame da persistência
da estrutura familiar no estado brasileiro e, por fim, o legado daí
resultante – a cordialidade, sua função e características.
Estamos em 1936, período de tensão em todo o mundo, e
Raízes
do Brasil começa, não por acaso, eu diria, com o confronto
de nosso país com a Europa.
4 Confronto
será o recurso utilizado pelo autor ao longo de seu livro. No capítulo
5 ele confronta o Estado com a Família, dizendo que o primeiro não
é uma ampliação do segundo. Sua utilização
de uma negativa como forma retórica já no início de
seu texto só faz valorizar o verbo utilizado para caracterizar a passagem
da Família ao Estado, o verbo transgredir:
é pela transgressão
da ordem doméstica e familiar que nasce o Estado, nos diz ele.
A transgressão, definidora de uma passagem de um lugar a outro, diz
também da violação de um limite, de uma invasão,
por fim, de uma agressão. Seu exemplo da incompatibilidade entre
os dois princípios é trágico, e o modo como ele nos
conta o núcleo do enredo não é sem dubiedade, obrigando-nos
a examinar a tragédia com mais atenção. Ele diz aí
que Antígona, ao sepultar Polinice, contra a ordem do estado, atrai
sobre si a cólera
do irmão, que não age em nome
de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade [...] da pátria. Ora,
quem aí não age, supostamente, em nome próprio, é
Creonte, tio de Antígona e não seu irmão! Estamos em
pleno ciclo tebano e a tragédia em exame é a tragédia
da família de Édipo, de quem Antígona é, ao mesmo
tempo, filha e irmã; mas Creonte é irmão da mãe
de Antígona, Jocasta, e por isso o interino e claudicante Regente
de Tebas. E há ainda um agravante a mais, se queremos examinar este
confronto entre a Família e o Estado: não se pode esquecer que
o filho de Creonte, Hemon, está noivo de Antígona e, ao saber
da morte da noiva, se traspassa morrendo junto dela; a esposa de Creonte,
Eurídice, por sua vez, ao saber da morte do filho também se
suicida; e ao tomar conhecimento de tudo isto, Creonte também quer
morrer. Note-se que é só depois de Creonte reconhecer
sua
funesta resolução, sua

, é só depois de ele reconhecer seus
desacertos -
como traduz Donaldo Schüler - que o Corifeu acerta:
Tudo indica
que tarde reconheceste a justiça – uma frase para se pensar,
eu diria.
Mais adiante, no que eu considerei a parte dois de seu texto, S. Buarque
de Holanda, ainda que sem aludir diretamente á tragédia,
criticará a
ereção da concorrência entre os
cidadãos como valor social positivo. Sim, a concorrência
entre os irmãos é algo muito complicado, embora isso não
queira dizer que nunca é produtivo. A própria concorrência
entre Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, ao que tudo indica,
deu resultados positivos, embora a citada frase do último - criticando
o valor positivo da concorrência - me faça pensar que isso
não tenha sido sem um custo. O mesmo se pode dizer da concorrência
entre S. Buarque de Holanda e Cassiano Ricardo
5,
quando o último registra a inclusão de seus comentários
na segunda edição de
Raízes do Brasil. Mas o
que me parece importante destacar é a diferença dessas citadas
concorrências, das quais eu diria simbólicas, porque centradas
na linguagem, de uma outra centrada no imaginário, no especular,
situação da qual todos conhecemos um exemplo bem típico.
Refiro-me aquele clássico duelo final dos velhos filmes de faroeste
em que um diz para o outro:
Este mundo é pequeno demais para nós
dois. – Pois essa me parece uma frase muito verdadeira. Esse mundo no
qual os eternos Etéocles e Polinices, os eternos Caim e Abel vivem,
tem que ser mesmo muito pequeno. Como eles não sabem que cada um
vive no seu próprio mundo, a imaginária intrusão de
qualquer outro roubar-lhe-á, necessariamente, não apenas a
metade do espaço, mas sim todo ele. Hesíodo dedicou-se à
poesia possivelmente para escapar da briga pela divisão de terras
com seu irmão Perses. Essa é uma solução muito
usual: um irmão segue sendo fazendeiro, cuidando dos negócios
da família, enquanto o outro vai ser doutor; são tentativas
de se criar outros mundos para viver. Assim que dizer da concorrência
apenas positiva ou negativa não me parece ter muito sentido. Antes
de qualquer coisa precisamos saber se ela é simbólica ou imaginária
e isso porque parece haver uma concorrência intrínseca ao ser
humano, uma concorrência da ordem do real, como diria Lacan, uma concorrência
impossível que não cessa de não se inscrever e que
tem de vir à tona de um modo ou de outro, seja pelo imaginário,
seja pelo simbólico, e isto em todos os níveis, sejam eles
internacionais, estaduais ou familiares. Fundamentalmente, o que é
preciso ter em conta é que toda esta tragédia de
Antígona
deriva de uma transgressão de Édipo ao cometer parricídio
e incesto. A importância disso consiste no fato de mostrar que a família
é constituída desde uma lei mais ampla, uma lei que diz respeito
à coletividade. Assim, diria que não se pode pensar no conceito
de família antes do conceito de sociedade. São interatuantes,
como nos mostrou Freud e depois Lévi-Strauss, com as suas
Estruturas
elementares do parentesco.
Vejamos um pouco mais sobre essa concorrência. Freud a considera
presente em um dos primeiros atos de civilização:
o controle
sobre o fogo. Esta realização
extraordinária
e sem precedentes (para utilizar suas próprias palavras
6), a qual ele mesmo reconhece ter todas as características
de uma
conjetura fantástica, consistiu simplesmente na
renúncia
a um desejo infantil de extinguir o fogo com um jorro de urina. Como testemunhas,
Freud invoca o gigante Gulliver, em Liliput, e o Gargântua de Rabelais.
A visão fálica das línguas de fogo parecia insuportável
e era preciso apagá-las, constituindo tal ato em uma relação
homossexual.
A primeira pessoa a renunciar a este desejo e a poupar o
fogo pôde conduzi-lo consigo e submetê-lo ao seu próprio
uso. Apagando o fogo de sua própria excitação sexual,
domara a força natural do outro fogo – diz Freud. O que aparece
aqui é a importância da
renúncia a uma
exigência
pulsional. Lembrem que vencido o
acordado período de governo,
Etéocles, por exemplo, nega-se a renunciar ao poder em favor de Polinice
resultando esta negação na conhecida tragédia. Se lembrarmos
que a alternação do governo tinha sido uma estratégia
para escapar da maldição paterna e evitar a guerra, podemos
pensar que, uma vez no poder, Etéocles imagina que este o garantirá.
Quando Freud retoma sua teoria pulsional em
O mal-estar na cultura,
me parece importante registrar que ele o faz também pressionado
por este mesmo clima de tensão antecedente da segunda guerra mundial.
Depois de publicá-lo em 1930, concluindo-o com a esperança
do triunfo de Eros sobre a pulsão de destruição, já
em 31, fustigado pela então evidente ameaça de Hitler, ele
acrescenta uma derradeira frase reveladora de sua dúvida sobre o resultado.
Mas o que quero ressaltar é que nessa retomada do desenvolvimento
de sua teoria pulsional, depois de começar dizendo com Schiller ser
a fome e o amor os motores do mundo, e depois de reconhecer
a importância da libido e da introdução do conceito de
narcismo, Freud chega aos conceitos de pulsão de vida e de pulsão
de morte, sendo que uma parte desta última é desviada no sentido
do mundo externo -
die Aussenwelt - como agressão e destruição.
Mas ambas as pulsões, de vida e de morte, tendem a andar sempre juntas,
em feixes, mescladas nas mais diferentes proporções, dificultando
seu reconhecimento; apenas o sadismo, como pulsão mais visível,
aquela que sempre se destaca, se desintrinca em primeiro lugar, aparece
como um vínculo. Freud diz tratar-se de uma
besonders starke Legierung7, uma liga particularmente
forte entre as tendências amorosas e a pulsão de destruição.
– Pois o que me parece é que neste vínculo também podemos
situar a
cordialidade, como um possível efeito de uma exigência
pulsional. Podemos situá-la aí sob a égide da
aufhebung
hegeliana. A cordialidade, aí colocada, ao mesmo tempo em que supera
a agressão, a conserva. Não seria de estranhar que a polidez
fosse a forma lapidada, polida, deste diamante bruto.
Isto me parece uma coisa importante de reconhecer, que tanto a tendência
ao amor como à destruição fazem parte da vida. Uma
não é sem a outra. A vida precisa tanto da morte quanto a morte
precisa da vida. A presença da morte nos faz valorizar a vida. Mas
não é fácil explicar a um assassino, menos ainda a um
suicida que seu ato louco implica em uma demanda de mais vida. É muito
fácil confundir as coisas. Quem conhece o
Caïn de Fernand-Anne
Piestre, mais conhecido como Cormon
8, esta enorme
tela de sete metros de largura, hoje no Museu d’Orsay, lembra de sua figura
desolada e solitária, embora a frente de uma pequena horda, fugindo
da presença de Jeová - como diz Victor Hugo em
La légende
des siècles [1889] - deserto a fora, depois de ter se sentido
preterido por Deus e culpado seu irmão por seu mal-estar.
Temos exemplos demais de atrocidades realizadas em nome do bem. Tivemos
a oportunidade de escutar aqui a leitura desta impressionante crônica
do Aurélio Buarque de Holanda sobre a exposição dos
restos de Lampião, Maria [já não tão] Bonita e
seus principais companheiros. O cronista parecia estupefato com o ar de festa
desta macabra exposição. Gilberto Freyre
9
nos conta da truculência dos senhores de engenho capazes de mandar
assar vivas escravas negras grávidas, autorizados pelo poder patriarcal.
Sabemos, porém, que isso não é coisa só dos nortistas,
também temos nossos causos. Diria que entre estes os que mais atraem
nossa curiosidade são os que contam das degolas nas revoluções
de 1893 e 94, entre federalistas e republicanos - uma distinção
que também não é das mais fáceis de entender
-, e também na de 1923. Ficaram famosas as degolas de Rio Negro,
em dezembro de 93, às vésperas do Natal, período de
clássico - para não dizer cínico nem cordial - armistício.
O interessante é que não se sabe exatamente o número
dos degolados e isto por uma concorrência entre os degoladores que
se jactavam de haver degolado um mais que o outro, o que faziam em meio
a risadas. Entre estes degoladores, que por certo foram vários, destacou-se,
contudo, Adão Latorre, muito possivelmente por ser negro, conforme
a opinião do Dr. Sérgio da Costa Franco e do Dr. Blau Souza
que fizeram a gentileza de me contar um pouco de suas pesquisas. Supõe-se
que só ele tenha matado 300 em um mesmo dia
10.
Nestes episódios, com vítimas de ambos os lados, muitos dos
degolados eram mercenários uruguaios que vendiam seus serviços
indistintamente. Para reconhecê-los, na ausência de documentos
identitários, pediasse-lhes para dizer a palavra
pauzinho a
qual, por dificuldades de fonação estavam impedidos de pronunciar;
e quando na resposta aparecia o indefectível
paussinho
os daqui riam enquanto aplicavam a gravata colorada.
Mas isto não foi invenção nossa. A Bíblia
conta que no confronto entre os galaaditas e os efraimitas, os primeiros
usavam do mesmo recurso pedindo-lhes para se identificar pronunciando a palavra
chibolet, sabendo que seu dialeto só possibilitava a
pronúncia de
sibolet. Na impossibilidade da contra-senha correta,
os galaaditas enchiam o vau do Jordão com cadáveres efraimitas
11.
Se eu lembro dessas passagens, é para dizer que o recurso da cordialidade,
não me parece um privilégio brasileiro. Tenho escutado a
Profª. Kathrin dizer que seus patrícios austríacos também
usam o recurso da cordialidade. Pois no período antecedente a primeira
guerra mundial o acordo estabelecido entre a França e a Inglaterra,
com o objetivo francês de escapar do isolamento diplomático em
que era mantida pela
Tríplice Aliança da Alemanha, Áustria-Hungria
e Itália, ficou conhecido como
entente cordiale. O recurso
da cordialidade parece mesmo estar para todos.
A originalidade de S. Buarque de Holanda está em dizer que o brasileiro
é cordial, está em dizer que nós somos cordiais e que
o coração abriga tanto o amor como o ódio. Amar bilaquianamente
a terra em que se nasce não implica na adoção de nenhum
catarismo.
S. Buarque de Holanda cita um sociólogo norte-americano dizendo
ter se transformado o empregado em apenas um número. Pois é!
E que lhes parece o fato de Costa-Gravas ter utilizado como título
de seu filme o
signo, penso que tenho de dizer assim – o signo
couperet?
Couperet se traduz ao português por
cutelo,
instrumento para cortar carnes em geral e, em particular, a cabeça
dos condenados. Se entendermos o signo como aquilo que significa algo para
alguém, temos de supor que, só por ler a palavra, as pessoas
já sabem do que se trata: desnecessários pedaços de
carne dourando ao sol de segunda-feira
12.
Para S. Buarque de Holanda a cordialidade é uma
máscara
através da qual
o indivíduo consegue manter sua supremacia
ante o social, e isto é tanto mais importante quanto ele necessite
desse social para libertar-se do
pavor em viver consigo mesmo. Como
bom americano – diz o autor – no brasileiro é a parcela social, periférica,
a que mais importa. Pois lembrei de um outro estudo desta mesma época,
de 1936. Trata-se de um estudo de Kurt Lewin, um Psicólogo Social
nascido na Alemanha, em 1890, e que depois trabalhou por muitos anos nos
Estados Unidos, até sua morte em 1947. Este texto faz uma comparação
entre os alemães e os americanos, tratando em particular desta questão
da distância social entre os indivíduos e me parece concordar
com Buarque de Holanda.
K. Lewin caracteriza a personalidade de um e de outro como formada
por cinco círculos concêntricos, dizendo que enquanto o alemão
tem apenas uma camada periférica, social e quatro camadas íntimas,
o americano tem quatro camadas sociais, externas e apenas uma íntima.
Os testemunhos que ele arregimenta são arquitetônicos: as casas
com alto muro e portão chaveado da família alemã por
contraposição a casa sem muro e sem chaves nas portas (um pouco
como nos contou o M.Scliar do Bom Fim de sua juventude). A conseqüência
é serem os americanos aparentemente mais sociáveis e parecidos
uns com os outros, mas em compensação, por ocuparem camadas
superficiais, as relações se mantêm superficiais e, como
diz K. Lewin, após anos de relações relativamente
íntimas, os amigos rapidamente feitos se despedirão com a
mesma facilidade com que o fariam ao cabo de poucas semanas de conhecimento13. Um número maior de camadas centrais, íntimas,
parece ser uma maneira plástica de representar uma menor necessidade
de apoiar-se nos outros, propiciando maior independência, mas o que
se vê, por exemplo, no episódio da Heldenplatz, é
que uma vez penetrado nessas camadas mais intimas não é difícil
fazer que a hostilidade para com o vizinho se transforme em hostilidade
para com uma raça em particular. Isto nos mostra que a independência
que importa não basta ser imaginária, como grande parte das
independências protéticas que andam por aí a depender
sempre de garantias externas. A independência precisa tornar-se simbólica.
Sem ela, tanto os superficiais quanto os, digamos, profundos podem ser facilmente
convencidos. Quero dizer com isto, entre outras coisas, da necessidade do
reconhecimento da separação do outro para o advento da independência
simbólica, e que para isto não basta a cesura do cordão
umbilical e nem mesmo as melhores intenções.
Para isso, o primeiro passo é o reconhecimento de nossa
própria participação no processo no qual estamos envolvidos.
No caso, este: os brasileiros, somos cordiais.
Na esperança de dizer com mais clareza como penso esse advento a
uma independência simbólica, queria contar-lhes um caso clínico,
ainda que em rápidas pinceladas. Trata-se de uma análise levada
a efeito por Jacques Lacan e relatada pelo próprio analisante – Gérard
Haddad
14.
Haddad é um judeu tunisiano a quem o pai tinha votado à
profissão médica. Nascido no período entre as duas grandes
guerras, ele tem muitos conflitos com seus pais e, como conseqüência,
não quer seguir a profissão escolhida pelo pai e nem a religião
da família. Quando procura Lacan ele já é um Engenheiro
Agrônomo com um trabalho por ele considerado interessante nas províncias
subdesenvolvidas da África e o esboço de um romance embaixo
do braço, além de uma neurose obsessiva tangente à loucura.
Já está casado e com problemas conjugais atazanantes e, devido
às suas inúmeras leituras, interessado na Psicanálise.
Já tinha tido uma entrevista com Jean Paul Sartre, que o incentivara
a continuar escrevendo, e também com Louis Althusser que lhe devolveu
o gosto pela ação no comunismo militante. A ação
central de sua análise, no meu entender, consistiu em sua reconciliação
com o judaísmo. Ele, que até então jamais pensara que
a
shoah, o genocídio e as perseguições ao povo
judeu tivessem qualquer coisa a ver com ele, termina por visitar Auschwitz
e Birkenau onde conhece as valas onde a cada dia se queimavam 20.000 corpos
dos filhos de sua gente. Ele descobre assim que o holocausto não
foi um crime apenas contra o povo judeu e sim contra toda a humanidade.
Entrementes, estuda medicina e torna-se analista vindo a ser reconhecido
como um especialista no Talmude de onde tirou, através das diferentes
técnicas de leitura e interpretação do mesmo, recursos
para melhor qualificar a interpretação psicanalítica.
– É isto! Será que consegui com este curto parágrafo
dizer-lhes o que entendo por independência simbólica? Será
que consigo deixar claro que ao se reconciliar com a religião familiar
ele o faz desde um outro lugar que não o da dependência neurótica?
Que ele o faz desde um lugar novo e original? Pois é por ter conquistado
um lugar destes, novo e original, que um Dvorak é capaz de inspirar-se
e compor uma sinfonia. As soluções são sempre originais
e idiossincráticas.
Mas nós, brasileiros, ainda estamos ocupados com uma crítica
que nos possibilite uma mais efetiva simbolização das relações
do indivíduo com a lei e é neste momento que encontro esta
peça do Chico, filho do Sérgio Buarque de Holanda, a
Ópera
do Malandro, uma ópera que põe em cena uma das faces desta
cordialidade do brasileiro e que nos possibilita, se não entender,
pelo menos sentir como o brasileiro enfrenta suas questões éticas.
Estarão lembrados de que esta ópera está situada
justamente no período central da segunda guerra mundial. Nosso país
mostra-se ambivalente, apoiando primeiro os Nazistas, em 1941, e depois os
aliados, em 42. É nesta atmosfera que ele situa o enredo da peça.
Aí está o malandro, gigolô de prostitutas, querendo se
dar bem. Mas a mulher que ele explora, é explorada pelo grande empresário
também, surgindo daí o conflito. A solução é
entrar no contrabando e amaciar a lei com um presente discreto. Mas a lei
reguladora é venal: como a Geni - não por acaso um travesti
(na leitura do Ruy Guerra) - ela dá para qualquer um que a pague.
E o empresário pode pagar mais para obter mais, quer dizer, paga
para apagar o malandro, a concorrência da arraia miúda. Mas
como o malandro quando cai, cai bem, trata de erguer-se com a ajuda do capital
estrangeiro, internacionalizando assim sua miúda técnica de
gigolô: dinheiro em troca de apoio, e assim logo sonha em abrir um
banco nacional com estes estrangeiros capitais, em Minas Gerais.
Que beleza
Que riqueza
Tá chovendo
Da matriz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz.15
Depois que o malandro aparece com retrato na coluna social, consolida-se
através do himeneu com a filha do empresário.
E então? Tudo certo? Onde está a falha? – Pois eu diria
que na lógica, por querê-la sempre matemática na ilusão
de que basta juntar elementos negativos para obter um resultado positivo.
Se o malandro - que parece uma derivação do italiano
malandrino,
com o sentido de
salteador, mas também do latim
malandrĭa,
uma espécie de lepra (uma lepra social, sem dúvida) – se ele
toma um gole de cachaça, não paga e dá no pé,
isto permite ir empurrando o problema e engordando as barrigas até
lesar o Banco Do Brasil que então, complicado com os investimentos
estrangeiros, inverte rapidamente o problema até chegar de volta
ao
garçom. E quando este vê um desempregado,
um ladrão de galinhas, um malandro, vai logo gritando:
Pega ladrão / Pega ladrão
E o ladrão / Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação.16
Muito obrigado.