Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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25 III 2011:

ALMAS À VENDA

Luiz-Olyntho Telles da Silva

Para Ricardo Landeira

Minha filha menor chegara àquela idade em que todas as crianças querem um cachorro. A esta altura, minha experiência anterior já havia me ensinado que o melhor é dar. E demos! Uma gracinha, filha de uma lady inglesa, com pedigree e toda a documentação de nobreza, Thyfannie recebeu seu nome após passarmos cuidadosamente por uma longa lista. A escolha teve a ver com o som, pois os cães labradores tendem a escutar melhor os sons com i. Era linda, com um pelo preto, brilhante como se recém lhe tivessem passado glostora.

Thyfannie chegou a nossa casa com um pouco mais de dois meses de idade, uma bolinha peluda sempre pronta a brincar e empenhadíssima em conquistar-nos. Mas seus dentinhos, começando a crescer, davam-lhe uma coceira infinita e ela precisava estar sempre mordendo alguma coisa. No início, os ossinhos de borracha eram suficientes, depois tivemos e agregar uns biscoitos feitos de couro que ela não terminava nunca de mastigar. Mas houve um dia em que a encontramos mordendo o marco de uma porta, e logo depois foi a vez de um sapato de minha mulher ser estraçalhado por aqueles alvos e já possantes caninos. Então, já não foi mais possível conciliar as gracinhas de Thyfannie com os prejuízos. Bem negociado com minha pequena, conseguimos sua autorização para instalar Thyfannie na chácara. E lá se foi ela, bem contente, e nós, todos os fins de semana, correndo para visitá-la. Thyfannie cresceu e um dia suas tetinhas apareceram mais intumescidas, o ventre um tanto acentuado, e em poucas semanas deu à luz nove cachorrinhos, sete peludas bolotinhas pretas e duas brancas; difícil dizer qual a mais linda. Quando se pega um filhotinho desses, e ele começa a lamber os dedos da sua mão, uma ligação se estabelece para sempre.

Mas eram muitos, e impossível ficar com todos. E então começamos a pensar nos possíveis candidatos para adoção.  

Isso aconteceu há muitos anos. Minha filha cresceu, e Thyfannie, depois de nos dar tantas alegrias, morreu de velha. Acompanhamos a vida de seus filhotes por certo tempo e hoje tenho notícias apenas de um, já bem velhinho também. E acho que já não lembraria nada disso não fosse o comentário de um amigo a quem recomendei o filme da diretora Sophie Bartes, Almas à venda (Cold souls). Em sua resposta brincalhona ele me dizia que o maior problema não é o de vender a alma, mas o de quem irá comprá-la. – Verdade! É bem assim, quando se estabelece uma intimidade com algum objeto, não é fácil nos desfazermos dele! Queremos saber para quem ele irá, embora essa preocupação quase nunca adiante muito. Com os filhotes da Thyfannie, juro que tivemos todos os cuidados possíveis, mas não adiantou. Por incrível que pareça, um dos candidatos, eu diria justamente aquele com a aparência de ser o mais cuidadoso e carinhoso com os pets, antes ainda de completar um mês com o filhotinho, teve de passá-lo adiante porque sua esposa não aguentou mais a presença do cãozinho em casa. Então aprendi: o destino do que sai de nossas mãos já não está em nossas mãos. Uma frase a ser epigrafada!

Mas em Almas à venda não tem nada disso. As pessoas se desfazem de suas almas sem perguntar para onde vão. Enquanto a alguns lhes basta saber que ficaram guardadas em um alojamento seguro, a outros pouco se lhes dá; vendem-na para matar a fome.

Preocupado com sua alma estava Paul Giamatti. No filme, ele representa a si mesmo, um ator com dificuldade em entrar no papel de um personagem. Se isso de representar-se a si mesmo não é exatamente uma novidade – em Quero ser John Malkovich, por exemplo, com o próprio John Malkovich, o tema foi tratado com maestria por Charlie Kaufman, embora em ambas as histórias, isso de retratar-se a si mesmo não passe de um argumento retórico do autor do roteiro, diferente do caso princeps da Divina Comédia, em que Dante, além de desenvolver o relato na primeira pessoa, inclui a si mesmo como personagem –, aqui se trata de um personagem que precisa introjetar o papel de outro personagem, e não de um personagem qualquer, mas de uma figura dramática de Tchecov, de um personagem russo; trata-se, por fim, da decantada alma russa.

A peça em destaque é uma das mais conhecidas do autor, Tio Vânia, e sendo Paul Giamatti o ator de sucesso que é, temos o direito de supor que seu papel fosse o principal, quer dizer, o papel de Ivan Petrovitch Voinitskii, tratado na intimidade como Tio Vânia, mas isso também não tem importância, o que está em jogo é o espírito da peça. Sua alma?

A alma, nos diz Platão, é o principio vital, mas é também o pneuma, o sopro, o espírito que dá forma ao corpo. Ocidentais, não podemos supor a vida sem a alma. Quando dizemos de alguém um desalmado, é só uma força de expressão para caracterizar uma pessoa de má índole.
 
E aí está Paul Giamatti, com uma crise de identidade. Eu vejo meus pés, diz ele, para em seguida perguntar: Como sei que são meus?  No segundo ato de Tchekov, na primeira entrada em cena de Serebriakov, o professor, que escreve sobre arte sem entender nada de arte, diz – em paralelo ao filme –, ter sonhado que sua perna esquerda não era sua. Há uma dor, mas não se sabe bem se é gota ou reumatismo. A dúvida instala-se no espírito da peça. Para Voinitskii não é só a perna, sua vida toda está perdida. É difícil para ele interpretar os sentimentos dos outros. - E para quem não é?

Vladimir Nabokov, que depois de ter se tornado um reconhecido escritor russo e emigrado para os Estados Unidos, já com um currículo de nove romances importantes, continuando a ser reconhecido em sua nova prosa inglesa, quando traduz Eugene Oneguin, a obra-prima de Puchkin, é severamente criticado. Seu principal crítico, se dermos crédito a Jeffrey Meyers,1 foi Edmund Wilson, que se tornou bastante conhecido entre nós por Estação Finlândia. Pois Edmund Wilson, que fora amigo de Nabokov (licenciado por Cambridge em literatura russa e francesa), acusou-o simplesmente de entendimento pobre da prosódia russa e falhas sérias de interpretação. Embora Nabokov, ao defender-se, tenha delatado o mau entendimento do russo por parte de Wilson, contando, por exemplo, que certa feita, ao ser desafiado a ler Eugene Oneguin em voz alta, Edmund Wilson começou a fazê-lo com grande prazer, deturpando cada segunda palavra e transformando o verso iâmbico de Puchkin em uma espécie de anapesto espasmódico com muitas hesitações que o faziam torcer a mandíbula e adoráveis sons agudos que criavam completa confusão no ritmo, a fama de má tradução persistiu. O denominador das diferentes críticas recaia em seu excessivo zelo na manutenção da prosódia e da sintaxe russa, o que tornava o texto praticamente ilegível.

Interessante que esse debate surgiu na mesma revista, New Yorker, em que apareceu o artigo da fictícia – eu suponho –, Sarah Shriber (na verdade a responsável pelo departamento de arte no filme), Soul Storage, através do qual Paul Giamatti procura a empresa para retirar sua alma.

Convencido, retira-a, e para sua surpresa uma alma que não passa de um grão de bico. Em seu lugar, introduz a alma de um poeta russo, mas, diga-se de passagem, de um poeta russo anônimo e morto de fome, não a de um Lermontov, nem a de Nabokov e menos ainda a de um Puchkin, como se bastasse a alma de um poeta russo qualquer para compreender o que ia pela alma de Ostrov, de Ielena Andréievna, de Sonia, ou pela alma de Tio Vânia. Passada a excitação de um primeiro momento, quando atinge certa impressão de que em fim é possível ser outro sendo o mesmo, o imaginário não se sustém e ele sabe que aquele ser não é exatamente ele, e quer sua alma de volta, mas já não sabe se isso será possível...

Na peça de Tchecov, depois do surto de paixões na dacha, quando Vânia e Sonia resolvem – frustradas as ambições amorosas que mudariam suas vidas para sempre –, retomar às suas antigas vidas, resta a pergunta: - será possível?

Moral da história: qualquer interpretação, seja ela de crítico ou trugimão, teatral ou psicanalítica, tem que ser feita sempre com a própria alma.


  























































































1. Edmund Wilson – Uma Biografia. Tradução de Fausto Wolf. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997.





































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