Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista






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JAMES JOYCE E A PSICANÁLISE
Discurso psicanalítico, ética e crise social

Luiz-Olyntho Telles da Silva

Vejo perigos correr
Quem não cuida que há mudanças.
CAMÕES, Redondilhas.




 


     
     Cada tempo tem seus costumes e sábios aconselham a temperar o tempo com o tempo, conforme ao aliterante Tempora tempore tempra, que não passa de um eufemismo para a adaptação. Mas lembro também de um antigo professor, Dom Antônio Cheuiche, que via nos periodos de crise o horizonte de novas concepções antropológicas. Por esta segunda via, nossas interrogações produzirão melhores resultados.


     Freud, não conseguindo fazer o que queria, inventou a psicanálise. Sabemos de suas fantasias de infância, quando pensava tornar-se um grande general, ou um ministro, e também que, devido às suas características pessoais, teve de desistir tanto da indústria como do comércio – o que seria de esperar de um judeu vienense –, para concentrar-se, ainda jovem, na vacilação entre o estudo da Jurisprudência, ou da Medicina. Ah! As decisões a que são obrigados os jovens pela cultura. Sua resolução pela Medicina, atribuída à escuta da leitura do ensaio de Goethe sobre a Natureza, por Carl Brühl, mostra bem sua ambição de compreender o mundo.  As identificações anteriores, contudo, não ficaram perdidas. As metáforas militares abundam na descrição do funcionamento do inconsciente, e se, durante o curso universitário, a única disciplina em que teve uma reprovação foi justamente a de Medicina Legal, podemos pensar em uma relação muito particular com as leis! De qualquer modo, registre-se o caminho oblíquo percorrido pelo desejo. Atira-se no que se vê e acerta-se no que não se vê!

     Quem conhece um mínimo de legislação, sabe que elas dependem sempre de uma interpretação. Pois as diferentes interpretações terminaram por produzir a multiplicidade das leituras psicanalíticas. Desde as diferentes e originais leituras dos primeiros discípulos de Freud às inúmeras leituras contemporâneas, entre as quais encontramos mesmo uma Psicanálise sem o Édipo, contrária às primeiras exigências do mestre, tudo parece ser possível! Se o caminho tende a ser oblíquo, a obliqüidade, por sua vez, lembremos, não é garantia de verdade.

     Entre todos os aspectos atinentes à teoria, um dos que suponho haver menor desacordo, concerne à importância atribuída à Literatura. Comecemos por aí.

     Há uma grande proximidade entre a literatura e a psicanálise. Os grandes mestres de Freud foram os alemães Goethe e Schiller, além de Sófocles e Shakespeare; Lacan, por sua vez, além desses, reconheceu também – entre outros – Claudel, Marguerite Duras e, claro, James Joyce. Verdade que a leitura dos escritores criativos nos ensina muito sobre nossos semelhantes, e, aí, sempre se pode conhecer um pouco mais de nós mesmos.

     Preciso dizer que a relação da Psicanálise com a Literatura se dá pela leitura? Ler, do latim legere, tem a ver com λογος. A aproximação entre esses dois termos se dá por meio do verbo λέγειν, falar, sendo o sentido primeiro de λέγειν, colher, reunir, como se faz também ao ler. Heidegger vê em λέγειν o sentido de estender frente, daí a idéia de apresentar o discurso depois de haver recolhido, depois de uma colheita selecionada. Agora, visasse a Psicanálise a essa colheita selecionada, resultante do logos, choveria no molhado. A Literatura faz isso muito melhor.

     Na Psicanálise, o processo é inverso: essa colheita é feita desde a própria circunstância, evitando-se a seleção, mediante a proposta de livre associação, e, desde aí, buscam-se as condições de dessubjetivação para chegar ao Che Vuoi?, para chegar a grande questão enunciada por Cazotte. Para tanto, a Psicanálise valoriza e respeita a palavra na sua grandiosidade inaugural e criadora, na sua poiésis, se posso me exprimir assim, conforme São João, na abertura de seu Evangelho: Ἐν ἀρχῆ ἦν ό λόγος, No princípio era o logos, era o verbo, a palavra. Nessa direção, o trabalho do analista consiste, como diz Freud, em levar o sujeito ao lugar que ele teria chegado se as melhores condições – considerado o seu mundo –, tivessem-lhe sido dadas. Isso passa muito mais pela análise e apropriação de um desejo do que pelo conhecimento. Não há como saber do sujeito, a não ser por suas produções significantes.

     Disse-lhes do caminho oblíquo percorrido pelo desejo. Pois, para examinar essa questão, relacionarei Joyce com a Psicanálise; e, em lugar de falar do Finnegans Wake, de Joyce, falarei da elogiada transcriação brasileira, Finnicius Revém, de Donaldo Schüler. Apoiar-me-ei, para tal, em uma entrevista televisiva, concedida pelo tradutor a um conhecido jornalista de minha cidade,1 detendo-me em três curiosas intervenções do entrevistador, por mim observadas.

     Do entrevistador, para que tenham uma idéia, dir-lhes-ei que é um respeitado jornalista, doutorado em Paris, e também admirado Prof. Universitário. Do entrevistado, premiadíssimo tradutor e escritor, dir-lhes-ei tão somente que, por dirigir seminários sobre a cultura grega em todas as instituições psicanalíticas de Porto Alegre e derredores, sua figura terminou muito associada à Psicanálise, e não raro o tomam por psicanalista, lugar do qual educadamente declina.

     Uma das primeiras questões colocadas pelo entrevistador, então, foi a seguinte: - Por que escrever ou traduzir um texto que ninguém entende? Resposta: - Todo texto literário é incomunicável. Uma língua absolutamente comunicativa (logo, fictícia) não requer interpretação, você recebe e comunica. Este é o princípio da Comunicação.

     Desse modo, anula-se o instrumento da linguagem, anula-se a língua. Mas quando se prejudica a comunicação, ao contrário, privilegia-se o instrumento. Os órgãos ditos de comunicação, a propósito, o que fazem, é nos dar uma sensação de sua existência. Essa sensação da existência da comunicação, Schüler atribui ao que ele chama de linguagem coloquial, uma linguagem que não acentua o instrumento. Ela é necessária para que o intelectual não seja considerado um chato que ninguém entende (sic).

     Distingamos, então, a crença ingênua na comunicação, da coloquialidade, adotada como estratégia retórica. A acentuação, a prevalência do instrumento é questão abordada desde Anaximandro2 e Parmênides3. E hoje vemos Derrida questionar essa acentuação do instrumento, da língua, aí veiculando signos de valor universal, ao trazer, em contraposição, seu conceito de différance. Esse conceito vai ser veiculado por uma lógica especial, na qual a noção de desconstrução, que recusa o pensamento dualista do racionalismo (ou isto ou aquilo), deixa em aberto a via pela qual ela, a différance (a marca pura – a letra – é a différance), passa no sistema da linguagem; e, aí, digamos com Lacan, é por onde passa o Real. E com a desconstrução dos sentidos, livrando-os da fixidez semântica, perdem-se as garantias da filosofia tradicional. Aí, o texto não se encerra em si mesmo. Estamos diante da noção de escritura. A resultante impossibilidade de comunicação deve levar ao exame das diferenças entre tradução, interpretação e hermenêutica.

     A hermenêutica busca encontrar sentidos encobertos. Mas não há sentidos encobertos. Derrida concorda com os estudos freudianos: não há sentidos encobertos, nem no texto nem fora do texto. O que há tem que estar no texto. Esse é o pressuposto da Psicanálise. E quando o analista interpreta, ele o faz apoiado na cadeia significante, conforme seu aparecimento no discurso.

     A seguir, o entrevistador nos surpreende com a afirmação de que Finnegans Wake não dispõe da chave de interpretação requerida por textos com novas densidades enigmáticas.

     É verdade! Sem uma chave, Champollion não teria decifrado a Roseta, e nem Jerônimo teria navegado nesse oceano desconhecido, em cujas ondas flutua o mamalujo joyceano (Mateus – Marcos – Lucas – João), para alcançar a tradução da Septuaginta. Tampouco nós leríamos o Finnegans Wake, e menos ainda escutaríamos nossos analisantes.

     As chaves para ler o FW, contudo, existem: destaque-se a Ciência Nova, magnum opus de Giambattista Vico, presente já na primeira frase do texto. A tradução do título, indicada ainda por Haroldo de Campos, ao enfatizar em Finnicius Revém a presença do fim no início, revela o reconhecimento dessa chave: no fim o início retorna, no finn o innicius revém. E o retorno envolve um rêve[m], o sonho havido no início, quiçá, de toda a Literatura. Na Cabala, a propósito, esse tratado filosófico-religioso hebraico, que busca decifrar os sentidos secretos da Bíblia, também consta estar o fim no início.4
 

     A leitura da circularidade da vida, presente em FW, não consiste então em nenhuma assertiva apocalíptica, em nenhum apoio para qualquer mântica, mesmo porque o que acontece só se sabe depois de acontecido. Consiste, sim, em uma ética. Trata-se do reconhecimento da presença do significante [no discurso], de cuja força mestra dependerá sua prossecução. Se me fosse permitido ler Orígenes,5 desde uma perspectiva não religiosa, diria que na sua famosa frase, aliud est vivere moriturum, aliud mori victurum (Uma coisa é viver como quem está para morrer, outra é morrer como quem está para viver), pode-se ler uma ética do significante, na qual mesmo um Foucault possa ter se abeberado: é da morte que vem a vida.

     A preocupação com a linguagem está presente em toda a obra de Joyce, e em Finnegans Wake temos seu ápice. Ela começa no neologismo de abertura do primeiro capítulo: riverrun. Na segunda edição da tradução, sua redação foi modificada: onde estava rolarrioanna, agora está rolarriuanna. Nota-se aí a preocupação em acrescentar ao verbete pelo menos mais um sentido, um sentido que, presente em riverrun, havia se perdido em rolarrioanna pela ausência da letra u: o sentido de rio, de riocorrente, não se perde, graças à consonância entre rio e riu, e se ganha a alusão às runas. Pois essas runas, de origem incerta, conotam antigas escritas dos povos germânicos do norte da Europa, cujos sinais, em escandinavo, querem dizer segredo.
 

     Segredo, através de mistério, faz parte da sinonímia de enigma. E, para avançar nos desdobramentos do enigma, requer-se o estranhamento. Advertidos de que o estranho - o unheimlich - está ligado justamente ao mais heimlich, ao mais familiar, apenas não reconhecido por ter sido superado (Überwindung)6, podemos pensar na aproximação ao enigma do sujeito, não pela via do conhecimento, e sim pela via do saber do analista, da ordem do significado, vale dizer, da ordem do inconsciente. E é essa impossibilidade de compreensão da verdade do sujeito, pelo menos como um todo, que aproxima os psicanalistas da obra de Joyce que, ao escrever de um modo plurideterminado, contribui para a compreensão da constituição do sujeito.

     Isso é uma coisa. Mas servir-se disso o entrevistador, para afirmar que o gosto dos psicanalistas por Joyce é uma maneira de declararem sua própria incapacidade em ajudar seus pacientes a chegar a algum lugar (sic), uau! Uma piada de mau gosto? Pode ser! Mas em que se baseou para dizer o que aí disse, frente às câmeras, para não sei quantos telespectadores? Perguntado, não respondeu! 

     Verdade que, hoje, o título de Psicanalista é de muito fácil obtenção em diversos lugares, o que acaba confundindo o público. Há mesmo instituições que confundem o saber psicanalítico com o universitário, distribuindo diplomas depois do simples cumprimento de uma série de cursos teóricos que variam de meses a uns poucos anos. Outras vivem abertamente no mundo do a priori, onde mesmo os alunos já se consideram analistas. Na sua época, Lacan deu um nome para essas instituições. Chamou-as de SAMCDA (Sociedade de Amparo Mútuo Contra o Discurso Analítico), e hoje são muitas as que se alinham sob essa sigla, mesmo algumas ditas lacanianas, por se valerem do nome sob razões menos dignas. Mas nem todas são assim. Ainda existem as que reconhecem o valor da análise e persistem. A generalização do entrevistador é, no mínimo, indevida!

     Mas, enfim, desse entrevistador, sobre sua relação com a psicanálise, se tem alguma, embora não veja como dizê-la senão distante, mediada pela leitura de um ou outro texto de Freud, aliás, não muito diferente da relação do público em geral, não posso negar que suas questões são mesmo provocadoras. O extraordinário de sua contribuição foi não ter deixado passar a importância de Joyce e de sua relação com a psicanálise, pois hoje, mais do que nunca, sabemos que a vida de cada um é influenciada pela história do mundo, por suas conquistas, suas vitórias e também por seus fracassos. As novas gerações não estão herdando apenas as novas tecnologias – quem não se surpreende ao ver como as crianças as assimilam facilmente! –, herdam também os desmandos, as decisões erradas, do mesmo modo como a honestidade ou a desonestidade dos governantes, com consequências em toda a estrutura familiar. Ainda que de modo inconsciente, cada sujeito herda toda a história do mundo, e isto é um dos importantes referendos da obra de James Joyce. Sua incompreensibilidade é uma mostra metafórica do modo como somos atingidos.

(Texto reescrito em janeiro-maio/2020)

Referências:
 
1. Entrevista concedida por Donaldo Schüler a Juremir Machado da Silva, na UNITV, em 12 de setembro de 2005, sobre a tradução brasileira de Finnegans Wake.
2. Cerca de 610 a.C. – 546 a.C.
3. Cerca de 530 a.C. – 460 a.C.
4. É conhecida a intenção de Joyce de reescrever a Bíblia. Se o seu Ulisses foi uma paródia da Odisséia, de Homero, Finnegans Wake pode ser lido como uma paródia da Teogonia de Hesíodo.
5. Cristão grego que viveu entre os séculos II e III,
6. S. Freud. O estranho (1919).


 
Dra. Ângela Pagot @; Dra. Marta D'Agord @;
Maristela da Costa Leivas @; Maria da Glória Telles da Silva @

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