Luiz-Olyntho Telles da Silva  Psicanalista


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A ESGRIMA

Luiz-Olyntho Telles da Silva

Junho, 2024

Si vis pacem, para bellum.
(TUCÍDIDES. [Antigo brocardo já constante em] A Guerra do Peloponeso. Séc. V a.C.)


Figurei nesses dias com um espadim novo, que meu padrinho me dera no dia de Santo Antônio; e, francamente, interessava-me mais o espadim do que a queda de Bonaparte. Nunca me esqueceu esse fenômeno. Nunca mais deixei de pensar comigo que o nosso espadim é maior do que a espada de Napoleão.
(MACHADO DE ASSIS, Memórias Póstumas de Brás Cubas, XII.)















    Se eu sou esgrimista, me perguntas?

    Não! Não sou, não.

    Uma vez, a propósito, por ter escrito sobre o mergulho, tomaram-me por mergulhador. Mas não! Também não sou. Quer dizer, tive algumas experiências, na juventude, mas não o suficiente para creditar-me o título de diver. O tema, contudo, me diverte; sempre me fascinou. Leio tudo que me cai nas mãos.

    E agora me perguntas se sou esgrimista. Pois a resposta continua sendo não. A rigor, não! Claro que, quando menino, como qualquer guri, brincava de capa e espada com os amiguinhos. Éramos, então, cada um de nós, o próprio Errol Flinn na pele do eterno Capitão Blood, um pirata lutando pela própria liberdade na coberta de um navio, uma mão na espada, a outra ao mastro, as velas enfunadas, a bujarrona soprando em direção às novas aventuras. Contudo, tenho de dizer, nossas espadas não passavam de espetos de churrasco, feitos de galhos de laranjeiras (que era para dar um sabor à carne). Com espadas de verdade, brincamos uma única vez, que me lembre: o pai de um dos colegas da turma esquecera aberta a porta da Loja Maçônica que ficava sobre a garagem, nos fundos do quintal de sua casa, e nós, furtivamente, pegamos as espadas usadas em seus rituais. Mas os sabres eram pesados, alguns se machucaram e a reprimenda, que não tardou, ficou na memória de todos, para sempre.

    Daqueles dias, ficou o gosto pela leitura. Os romances de aventuras iluminavam minhas noites. Lembro de meu pai precisar vir ao meu quarto pedir-me para apagar a luz, às vezes repetidamente. É tarde, dizia-me ele, sempre paciencioso. Tens que acordar cedo. O colégio não espera. Mas eu não podia abandonar Scaramouche, em plena Revolução Francesa, lutando pela liberdade de cidadãos injustamente condenados. Impressionava-me sua superioridade e seu bom humor. Scaramouche havia nascido com o dom do riso e a sensação de que o mundo estava louco. Aliás, esta frase, saída, assim, num repente, da pena de Rafael Sabatine (1875-1950), tornou-se tão marcante a ponto de ser tomada para o epitáfio desse grande escritor. Noutras noites, era o Pimpinela Escarlate, também em plena Revolução Francesa, brandindo sua espada para resgatar da guilhotina tanto os camponeses como os aristocratas injustamente condenados. Ah! Eu havia nascido fora do tempo. Os dias heroicos haviam terminado. A Baroneza de Orczy (1865-1947) bem sabia disso e, por certo, descrevia essas aventuras para salvaguardar valores que se queimavam nas chamas da violência ordinária. Sabia-o também o grande Alexandre Dumas: d’Artagnan era um jovem em busca de um lugar no mundo, e o mundo era Paris. Mon Dieu! Se começar as relações com o pé esquerdo é entendido como um signo de azar, para d’Artagnan foi tudo ao contrário: seus duelos para reparar ofensas e mal-entendidos, em uma época em que os duelos estavam proibidos, o que significava duas vezes mais coragem para brigar, resultaram nas melhores amizades que um jovem poderia ter. Os Mosqueteiros do Rei Luís XIII eram honestos, destemidos, varonis e sempre lutavam em defesa da honra e da liberdade, e da lei.

     Quando Alexandre Dumas escreveu a história do jovem gascão, no século XIX, já haviam passado duzentos anos dos acontecimentos aí descritos. A revolução francesa também já havia passado, mas a arte da esgrima florescia. Dumas Père (1802-1870), não por acaso, foi amigo pessoal de Augustin Grisier (1791-1865), um dos mais importantes Mestres de Armas daquele século e autor de Las Armas Et le Duel. Os dois, por certo, trocavam informações sobre suas obras e, é bem possível que discutissem também as ideias de Edmund Burke (1729-1797) sobre a revolução francesa (1789). Burke, depois de ter defendido a Revolução Americana (1776), em sua demanda de independência, criticou acirradamente a decantada Revolução Francesa, acontecida poucos anos depois, em 1789: os americanos, esses reivindicavam o apoio da lei, quebrada por uma iniciativa pessoal do Rei George III, enquanto os franceses estavam demandando – e merecendo – liberdade para todos e, para isso, indo contra a lei. A luta de meus heróis dava conta disso.

    Foi nesses dias que, pela mão dos ingleses, a esgrima passou de uma arma para defesa da honra para um sport, e não houve Mestre de Armas, em toda a Europa, que não abominasse tal decadência.

     A esgrima clássica é uma arte em que se empenha a vida. Acredito que os primeiros a reconhecer-lhe o valor tenham sido os italianos. Minha crença apoia-se na percepção de Montaigne ao reconhecer a importância da publicação, em 1553, do Trattato di Sientia d’Arme, por Agrippa.

     Não estás lembrado?

     Sim! Agrippa! O mesmo Camillo Agrippa que propôs a solução para o transporte do obelisco que está hoje na Praça de São Pedro, em Roma. Agrippa codificou a esgrima definindo as quatro primeiras de suas seis posições: a prima, a segunda, a terça e a quarta, posições que se definem, entre outros movimentos, pelo lugar do esgrimista em relação ao ferro do adversário e também do seu próprio e da posição de sua mão, se está voltada para cima, ou se as unhas estão para baixo, por exemplo. E pelo modo como o esgrimista desempenha essas posições é possível, para um especialista, dizer em qual escola se formou. Digo isso, primeiro porque Don Antonio Marin, ao traduzir o Tratado Completo de Esgrima, em 1841 – preservando assim a importante obra do Mestre de Armas francês, Louis Justin Lafaugère –, ajudou-me sobremaneira a entender um pouco as diferentes posições ao esclarecer os cento e onze diferentes termos utilizados nos assaltos com florete; em segundo lugar, porque além dos italianos e dos franceses, os alemães, os ingleses, os húngaros, entre outros, também tiveram escolas de excelência.

     Foi La Boissière que, no séc. XIX, aperfeiçoou a máscara de arame trançado, dando, com isso, um passo decisivo para que o florete passasse de arma de defesa para um dispositivo esportivo. O argumento era de que, só na França, segundo alguns cálculos, nos anos entre 1588 e 1608, cerca de oito mil homens morreram em duelo.

     Alguns Mestres de Armas desenvolveram estocadas pessoais e só ensinadas àqueles alunos mais promissores. Estas fintas, o mais das vezes, constituídas de pura simplicidade, eram mortais. Debussy deve ter aprendido aí, pelo valor da metáfora, que a simplicidade é o último passo antes da perfeição.

     Em França, criou-se a expressão sentiment du fer, um instante de sensibilidade no qual a alma do esgrimista distendia-se ao longo da lâmina para, lá na ponta, auscultando a vibração do ferro contrário, poder perceber, em uma fração de segundo, qual o movimento seguinte de seu opositor. Desse sentimento, dessa sensibilidade dependia, muitas vezes, o passo decisivo em direção à vida ou à morte. E, muito importante: o sentiment du fer não podia ser ensinado. Sua aprendizagem dependia do espírito sereno, atento e respeitoso, desenvolvido pelo esgrimista ao longo de sua vida. O Capitão Blood, Scaramouche e Pimpinela Escarlate certamente o tinham.

     Esta arte estimula a prudência, o respeito pelo outro, o senso de dever e, acima de tudo, a honra.

     Entendes?

     O senso de dever desses mestres não tinha nada a ver com nenhum dever de ofício, com algo imposto de fora, como se fosse uma característica sine qua non de alguma guilda, de um grupo esotérico, uma associação de mestrias ou qualquer sociedade secreta. Era antes o efeito da compreensão do valor da vida, do respeito que ela merece, algo que absolutamente tem a ver com o dinheiro capaz de comprar tudo. Tratava-se de um valor estabelecido de si para consigo mesmo, uma retidão ética, um dever capaz de proporcionar uma real percepção das intenções do outro, sua felicidade e sua infelicidade e também quando participar desses sentimentos, se podia ser de perto ou se devia ser de longe. É esse sentimento de dever que leva à conquista da dignidade, da coerência pessoal, a isso que chamamos honra.

     Talvez, meu caro, nesse momento, ao ver a relva manchada pelo sangue do vencido por ter recebido uma estocada no braço, ou no peito, ou mesmo na jugular, sejas levado a virar teu rosto em um gesto de repúdio a ínsita violência dessa prática. Mas todos os Mestres de Armas sabiam dessa violência e a ela não renunciavam. Seu argumento sempre foi o de que um povo que abrisse mão dela destruiria a si mesmo qual um rebanho de cordeiros: seriam degolados pelo primeiro sicário.

     A transformação (alguns diriam o rebaixamento) dessa arte em um sport, ao tirar-lhe o aspecto mortal, empobreceu-lhe a ética. Os duelos, para lembrar um de seus aspectos, já não têm padrinhos que testemunhem a obediência às regras e a observância das boas maneiras. Os esgrimistas, logo, não têm padrinhos para cumprimentar. No sport, apenas juízes, muitas vezes eletrônicos, para valorizar os toques, e os duelistas podem muito bem não se conhecer. Não há nada pessoal em jogo. Um certo Mestre de esgrima, a acreditar em Arturo Pérez-Reverte, para dar uma noção clara do empobrecimento da esgrima aos seus alunos, ao ver sua arte tratada como um sport, quando não mais consideram sua aplicação prática no campo da honra, dizia, sem pestanejar, que isso não passava de uma aberração; em um exemplo disparatado, para ele era como os sacerdotes rezando a missa em português. Mais atual, talvez mais popular, mas perdia-se a bela sonoridade, um tanto hermética do latim, agora desvinculado o ritual de suas raízes mais profundas, degradando-o a vulgaridade. E, sem esquecer que quando isso aconteceu já haviam banido o latim das escolas, não está demais dizer que ao perdermos as tradições, perdemos junto a história, perdemos a relação com nossos antecedentes.

     Ao perdemos o substrato das palavras que usamos para nosso conhecimento, vamos perdendo a base sobre a qual nos constituímos. Ao objetarmos a violência, perdemos, do mesmo modo, a capacidade de defendermos nosso ponto de vista, cedendo nosso lugar à posição de manada.
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FORTUNA CRÍTICA:

Armindo Trevisan:

Caro amigo Luiz Olyntho:
        Agradeço-te o texto sobre Esgrima que acabaste de me enviar.
        Obrigado pelas informações que dás aos teus leitores, e tiveste a gentileza de mas dar,  precedidas por agradáveis reminiscências infantis, sobre um “esporte” para mim” exótico...
        Escreves com agilidade, graça e finesse.
        O curioso é que, para aprender um pouco mais a arte de escrever, andei relendo, dias atrás, um escritor, julgado maldito pela inteligentsia brasileira, mas que é um dos grandes estilistas de nossa língua: Gustavo Corção. O livro, aliás,  nem é todo de Corção:  trata-se de uma coletânea de crônicas do autor de Lições de Abismo, organizada por Luiz Paulo Horta.
        Descobri, nesse livro, que o Corção passou por uma fase de esgrimista, o que muito me surpreendeu. Surpreendeu-me ainda mais por ele dedicar algumas páginas às posições do   corpo, que a esgrime exige.  Sugiro que leias a crônica de Corção que é também bem escrita, sugestivamente bem escrita, como a tua.
        Dica: Gustavo Corção: Melhores Crônicas da Global. Seleção e prefácio de Luiz Paulo Horta. São Paulo, Global Editora, 2010. p.76-78.